16/12/2023

Filosofar no Sul: Problemáticas políticas, institucionais e éticas

Teresina, Piauí, Brasil

Caros amigos, colegas e pesquisadores,

É com grande alegria que divulgamos a chamada de artigos para o dossiê Filosofar no Sul: Problemáticas políticas, institucionais e éticas, a ser lançado em 2024 pela Pensando - Revista de Filosofia (A2).

Este número especial está sendo organizado com muito carinho pelo Ernst Wolff (KU Leuven), pela Amélie Ekassi (ENS-Yaoundé) e pela Cristina Viana (UFAL)

As contribuições são aceitas em português, em francês e em inglês. A chamada completa está disponível nos três idiomas no seguinte link: https://periodicos.ufpi.br/index.php/pensando/announcement

Chamada de artigos

Os universitários da atualidade são herdeiros de histórias complexas. Acontecimentos regionais e internacionais, muitas vezes tumultuosos e violentos, moldaram seus países, suas instituições e sua consciência de si. Isso teve um impacto significativo sobre a forma pela qual as práticas universitárias do ensino e da pesquisa são conduzidas hoje em dia, exercendo um efeito ambíguo de favorecimento e de restrição sobre o trabalho de todos os acadêmicos.

Tudo isso é visível de modo bastante particular nos países não ocidentais, sobre os quais se concentrará a presente edição especial proposta pela Revista Pensando. De modo específico, pretende-se explorar as dificuldades e o potencial da filosofia enquanto elemento da vida acadêmica e social nesses países.

A criatividade das pessoas curiosas certamente desempenha um papel importante na história das ciências, no entanto, estudos recentes cada vez mais têm enfatizado o papel que a colonização, a conquista e o capitalismo predatório desempenham na formação das universidades e na vida acadêmica nos nossos países (CASTRO-GOMES, 2008). A própria prática científica – seu ensino e sua pesquisa – foi corroída internamente, pela visão de que certos povos seriam inferiores e irrelevantes para a história. Além disso, suas terras e seus recursos foram constantemente tomados como se estivessem à disposição dos interesses de alguns poucos poderosos estrangeiros (CÉSAIRE, 1955; MIGNOLO e WALSCH, 2018). Consequentemente, as populações originárias e, em certos casos, os descendentes de povos escravizados foram considerados como meros objetos de pesquisa, sendo que sua capacidade genuína de produzir conhecimento foi ignorada. Se é verdade que as universidades desempenharam um papel sem sombra de dúvida muito importante na forma moderna dos países do “Sul”, é preciso dizer que a “modernidade” representa aqui uma herança bastante ambígua, por conta dessa bagagem corrosiva.

Nessa perspectiva, a aurora da independência trazia a promessa de uma reforma total das ciências: pensar a partir do reconhecimento da verdadeira humanidade de cada povo, respeitar as diferenças culturais e linguísticas, alinhar a pesquisa com o ensino em prol dos interesses reais das populações locais... Mas o que foi feito dessas promessas? No que diz respeito especificamente à filosofia, podemos de fato notar o surgimento de universitários eruditos que são analistas conscientes dos assuntos de sua localidade (e isto tem sido estudado já há algum tempo, como podemos ver em MENDIETA, 2003 e WIREDU, 2004). Mas estes casos pouco frequentes estão ainda longe de corresponder ao conjunto da realidade. Em vez disso, o que é mais visível é o efeito onipresente da “filiação epistemológica” às filosofias ocidentais (MUDIMBE, 1988, ou, no caso do Brasil, cf. ARANTES, 1994), ora mais orientadas para a Europa, ora para o mundo universitário anglo-americano. Com muita frequência, tem-se a impressão de que as nossas instituições acabam por subvalorizar os autores, os modos de pensamento e as preocupações que são locais e originárias. Em inúmeros países, este fenômeno é acentuado por uma contínua sub-representação ou mesmo ausência, entre os membros da comunidade universitária, dos povos autóctones, das populações negras e de certas minorias.

Os editores dessa edição especial da Revista Pensando consideram que esta subvalorização é, evidentemente, indesejável, porém suscetível a mudanças para melhor. Nós convidamos nossos colegas a refletir conosco sobre esta situação, bem como sobre as maneiras de remediá-la. Uma tal reflexão está comprometida com o aprimoramento das nossas práticas em relação ao seu contexto social, além de também estimular o intercâmbio entre filósofos que trabalham sobre problemas similares no mundo todo; além disso, tal reflexão pode contribuir para aumentar a circulação planetária da filosofia feita a partir da localidade em que cada um de nós se encontra.

Embora motivados por esta visão, nós compreendemos a complexidade do problema. Como desfazer a história corrosiva, sem ressentimentos em relação aos métodos científicos e, ao mesmo tempo, preservando uma parte do patrimônio, por exemplo, a instituição da Universidade? Mesmo criticando a fabricação de estereótipos e o chauvinismo ocidental transmitidos pela filosofia, como é que se pode evitar a depreciação dos nossos próprios antecessores que assimilaram esta tradição e tentaram redirecioná-la para as causas que aqui perseguimos? Como defender o lugar do que é originário e local na filosofia, sem, no entanto, inadvertidamente adotar uma visão essencialista e folclórica das sociedades contemporâneas? Por outro lado, como praticar a filosofia do povo e para o povo, tal como nos conhecemos a nós próprios e aos nossos contemporâneos, sem aceitar com fatalismo as forças injustas que moldaram – e continuam moldando – nossos mundos de vida? Como a filosofia pode ajudar a desenvolver uma memória social crítica e uma compreensão de si (MARQUES, 2023), sendo que ela própria aumenta a capacidade e a dignidade das sociedades já deformadas?

Eixos de discussão:

Com isso em mente, nós convidamos os colegas a uma reflexão conjunta sobre a pluralidade de experiências da prática filosófica, com o objetivo de promover o diálogo entre os países do “Sul”, mas sem excluir alianças com o “Norte”, no que seria uma perversa vingança essencialista. Alguns caminhos de reflexão podem ajudar na nossa orientação:

 

  1. Como devemos compreender as categorias do local e do originário? Como a filosofia contemporânea deve se relacionar com o patrimônio cultural e com a tradição (MBONDA e RONDEAU, 2015), incluindo aí os saberes do período pré-colonial?
  2. As questões relativas à prática filosófica devem ser concebidas numa perspectiva histórico-crítica. As opiniões sobre a relação entre modernidade e colonização variam desde a tese conjuntiva (MIGNOLO e ESCOBAR, 2007) até a tese disjuntiva (TÁÍWÒ, 2010). Há ainda muito por fazer para clarificar as diferentes formas de modernidade e modernização (APPADURAI, 1996; KNÖBL, 2007) e as diferentes formas de colonização e de colonialidade (PAUL e LEANZA, 2020) em suas relações com os diferentes modos de capitalismo. Mas nós precisamos também contextualizar a prática filosófica na política, na sociedade e nas instituições do período pós-independência. A exploração dessas questões abriria uma perspectiva sobre os problemas persistentes de raça, de classe e de formas de humilhação internalizada, as quais frequentemente se sobrepõem (MUNANGA, 2020).
  3. Quais filosofias, formalizadas ou não, foram propostas por nossos antecessores? Como podemos integrá-las no currículo? O que nós podemos aprender com estratégias intelectuais tais como o “canibalismo” (ANDRADE, 1928) e a “transfuncionalização” (EBOUSSI BOULAGA, 1977)? Nessa direção, o trabalho fornecerá num dagnóstico da herança ocidental: o que é hegemônico e o que poderia ainda ser reaproveitado de maneira produtiva (SOUZA SANTOS, 2014)?
  4. Em função de quais orientações normativas devemos reconsiderar a prática filosófica? Expressões tais como “afirmação de si”, “justiça cognitiva”, “bem comum”, “democracia radical” e “proteção do meio-ambiente” vêm à mente, mas precisam ser especificadas. E como compreender a relação entre a filosofia – e as ciências humanas e sociais em geral – e o engajamento ativo em resposta a essas reivindicações normativas? A educação e a participação na formação da opinião pública seriam suficientes, ou os filósofos devem ainda, na sua condição de professores, se engajar em mudanças estruturais, ou mesmo no ativismo? (ALMEIDA, 2018; RIBEIRO, 2019)?
  5. As instituições nos colocam em contato com os estudantes e facilitam nosso trabalho, porém sua inércia restringe nossa prática e sua estrutura de autoridade não raro impõe autocensura. Nós precisamos de diagnósticos desses problemas – quer sejam herdados ou mais recentes – e de sugestões práticas sobre como transformar as instituições em instrumentos que facilitem nossas iniciativas.
  6. Quanto mais nós enfatizamos que a filosofia é situada, mais a nossa relação com as filosofias que são situadas de forma diferente da nossa levanta questões. Quais termos deveríamos utilizar para conectar essas experiências e necessidades divergentes: universalismo, pluriversalismo, uniformidade, generalidade, diálogo, hidridismo...? Como partilhar pontos de vista e encontrar questões comuns, sem essencializar o Sul e seus povos, como aliás o faz todo pensamento chauvinista?

Comissão científica:

Profa. Cristina Amaro Viana (Universidade Federal de Alagoas, Brasil)

Prof. Ernst Wolff (KU Leuven, Bélgica)

Profa. Amélie Aristelle Ekassi (École Normale Supérieure de Yaoundé, Camarões)

 

Instruções para submissão de propostas:

  • Nós convidamos as pesquisadoras e pesquisadores que desejam participar desta edição especial da Revista Pensando a manifestar seu interesse até o dia 20 de fevereiro de 2024, enviando um breve resumo que pode ser submetido em francês, em português e em inglês. O resumo deve ser redigido no formato WORD, conter em torno de 300 palavras e ser acompanhado de um título, de uma bibliografia indicativa, de 05 (cinco) palavras-chaves e de uma curta nota biográfica do/a/s autor/a/s. Os resumos devem ser encaminhados para os seguintes e-mails: ekassiamelie@yahoo.frwolff@kuleuven.becristina.viana@ichca.ufal.br. Os autores que eventualmente perderem este prazo para manifestar interesse poderão ainda solicitar a possibilidade de submeter seu artigo, sendo que seu nome poderá ser colocado numa lista de espera.
  • A submissão do artigo final deverá ser feita pelo portal da Revista Pensando até o dia 25 de abril de 2024. É imperativo seguir criteriosamente as instruções destinadas aos autores disponibilizadas no seguinte endereço: https://periodicos.ufpi.br/index.php/pensando/about/submissions.

Bibliografia:

Appadurai, Arjun, Modernity at large: cultural dimensions of globalization. Minneapolis: University of Minnesota, 1996.

Almeida, Silvio Luiz, O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.

Andrade, Oswald de. Manifesto Antropófago. In: Revista de Antropofagia 1/1, May 1928.

Arantes, Paulo Eduardo. Um departamento francês de Ultramar: Estudos sobre a formação da cultura filosófica uspiana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

Castro-Gómez, Santiago, (Post)Coloniality for Dummies: Latin American Perspectives on Modernity, Coloniality, and the Geopolitics of Knowledge. In: Coloniality at Large: Latin America and the Postcolonial Debate. Moraña, Mabel, DUSSEL, Enrique, Jáuregui, Carlos A. (Eds.). New York: Duke University Press, 2008.

Césaire, Aimé, Discours sur le colonialisme. Paris: Présence africaine, 1955.

Eboussi Boulaga, Fabien. La Crise du muntuAuthenticité africaine et philosophie. Paris: Présence africaine, 1977.

Knöbl, Wolfgang. Die Kontingenz der Moderne. Wege in Europa, Asien und Amerika. Frankfurt: Campus, 2007.

Mbonda, Ernest-Marie; Rondeau, Dany. La Contribution des savoirs locaux à l’éthique, au politique et au droit, Québec: Presses Universitaires de Laval, 2015.

Marques,  Lúcio Álvaro. Formas da filosofia brasileira. Cachoeirinha: Editora Fi, 2023.

Mendieta, Eduardo (Ed.). Latin American Philosophy. Currents, Issues, Debates. Bloomington: Indiana UP, 2003.

Mignolo, Walter; Escobar, Arturo (Eds.). Globalization and the de-colonial option. London, New York: Routledge, 2007.

Mignolo, Walter; Walsh, Cathérine. On Decoloniality. Concepts, Analitics, Praxis, Durham and London: Duke University Press, 2018.

Mudimbe, Valentin Yves. The invention of Africa: gnosis, philosophy, and the order of knowledge, Bloomington: Indiana University Press, 1988.

Munanga, Kabengele, Negritude: Usos e sentidos. São Paulo: Autêntica, 2020.

Paul, Axel; Leanza, Matthias (Eds.). Comparing Colonialism: Beyond European Exceptionalism. Leipzig: Leipziger Universitätsverlag, 2020 (Comparativ. Zeitschrift für Globalgeschichte und vergleichende Gesellschaftsforschung 30 (2020) 3/4).

Ribeiro, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Cia. Das Letras, 2019.

Sousa Santos, Boaventura de. Epistemologies from the South. Justice against Epistemicide. Boulder: Paradigm, 2014.

Ta?i?wo?, Olu?fe??mi. How colonialism pre-empted modernity in Africa. Bloomington: Indiana University Press, 2010.

Wiredu, Kwasi (Ed.). Blackwell Companion to African philosophy. Oxford: Blackwell, 2004.

Link: https://periodicos.ufpi.br/index.php/pensando/announcement