A crise da educação como sintoma da barbárie contra a civilização

Christian Lindberg

Professor vinculado ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFS e ao Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO/UFPE).

29/04/2025 • Coluna ANPOF

Em colaboração com Associação Brasileira de Ensino de Filosofia (ABEFil)
GT Filosofar e Ensinar a Filosofar da Anpof

Atribui-se a Darcy Ribeiro a famosa frase de que a crise na educação brasileira não é uma crise, mas um projeto. Ao cotejar a obra do eminente antropólogo, mais precisamente o livro Sobre o óbvio, observa-se que ele tece a seguinte afirmação: “A crise educacional do Brasil da qual tanto se fala, não é uma crise, é um programa. Um programa em curso, cujos frutos, amanhã, falarão por si mesmos”. Esta frase, vez ou outra, ganha espaço nas mais variadas manifestações do povo brasileiro quando o assunto é apontar o péssimo desempenho do país nas avaliações de larga escala ou para tecer críticas ao descaso governamental com a educação.

Embora a Constituição cidadã prescreva itens fundamentais para garantir a efetivação do direito à educação, após a implantação de políticas neoliberais em nosso país, a partir de meados dos anos 1990, nota-se que o cenário educacional perpetua um conflito entre o que chamarei de civilização versus barbárie ou, se preferir, barbárie versus civilização.

No leito civilizacional, têm-se políticas públicas que procuram dar materialidade aos preceitos constitucionais, a exemplo da universalização do acesso a educação básica e superior, o incremento do financiamento público, a adoção de medidas de inclusão educacional para grupos étnicos e socialmente vulneráveis etc. Nessa direção, o debate é público, procurando envolver o máximo possível de pessoas na elaboração e tomada de decisões. Em suma, as políticas públicas procuram manifestar, de algum modo, a vontade soberana da população.

No outro, o da barbárie, encontram-se ações que procuram realocar recursos públicos para empresas privadas, entidades confessionais, sem fins lucrativos ou patronais. Na mesma direção, pode-se incluir uma agenda pautada em valores morais da gestão empresarial. Assim, termos como eficiência, maximização dos recursos, excessivo controle quantitativo das políticas públicas, qualidade total, competitividade ganham terreno no debate público. Em outros termos, a administração escolar torna-se burocrática e pretensamente imparcial, ou seja, sem o crivo ideológico das amarras políticas.

É histórico, portanto, que o conflito entre civilização e barbárie tem pautado a reflexão filosófica que entende a educação como um problema. Diderot, no livro Plano de uma universidade, ao expor para a rainha Catarina, da Rússia, os motivos que justificam a expansão do direito à educação, afirma que a educação é quem diferencia os seres humanos civilizados dos bárbaros, apontando que todo povo que se propôs ao esclarecimento tornou-se civilizado. Condorcet, também iluminista, preconizou que, nos séculos de ignorância, a tirania imperava entre os povos. Desse modo, como defensor da liberdade e da igualdade entre os seres humanos, advogou que a educação para todos é o instrumento capaz de conduzir os indivíduos para o conhecimento, eliminando, portanto, qualquer traço de barbárie. Nota-se, portanto, que civilização aparece sempre como o oposto da barbárie.

Porém, nos últimos anos, com destaque especial para a ascensão política de forças de extrema-direita em nosso país, a disputa pela hegemonia educacional entre civilização e barbárie ganhou novos contornos. Se antes o principal alvo do debate era sobre a destinação dos recursos públicos na execução de políticas educacionais ou na gestão educacional, vemos, agora, outro tipo de agenda para a educação. Como nos alertou a então ministra Damares Alves: “É uma nova era no Brasil: menino veste azul e menina veste rosa”. Assim, temas como educação e sexualidade, educação e gênero, educação ambiental, liberdade de cátedra, educação para a cidadania, além da legitimidade da própria escola como espaço institucional para promover o direito à educação das crianças, jovens, adultos e idosos foram postas em xeque. Como contraponto, entraram na discussão propostas como Escola sem partido, homeschooling, Escolas cívico-militar e mais um punhado de ideias e ações que estão contribuindo para, no mínimo, conturbar o cenário educacional brasileiro.

A extrema-direita recorre a um vocabulário aparentemente crítico diante da situação educacional brasileira, para, em seguida, impulsionar seus postulados reacionários. John Holt, assíduo defensor do homeschooling, no livro Ensino do seu jeito, afirma que a escola: viola a liberdade das crianças ao promover avaliações psicológicas regulares, rotulando-as das mais variadas formas (hiperativa, dificuldade de aprendizagem etc.); expõe as notas através de rankings ou promove a competição entre os estudantes; é incapaz de coibir as mais variadas formas de violência (moral e física); obriga as crianças a estudarem; não respeita a crença religiosa das famílias devido a valores supostamente laicos; e, principalmente, não garante a aprendizagem das crianças e dos jovens. John Taylor Gatto, no livro Emburrecimento programado: o currículo oculto da escolarização obrigatória, afirma que a escola é um fator da tragédia educacional por não ensinar nada às crianças, a não ser a obedecer a ordens, que geralmente são ditadas pelos/as professores/as.

Há, inclusive, um sentimento que identifica o professor e a professora como inimigos da família e dos valores morais que possuem. Os extremistas de direita afirmam, por exemplo, que os docentes recorrem à liberdade de cátedra e aos fundamentos educacionais contidos na legislação como subterfúgio para promoverem, em sala de aula ou na escola, o doutrinamento político-ideológico, macular a natureza humana ao converter as crianças e adolescentes em pessoas LGBTQIAPN+ e/ou transformá-las em militantes partidários do que denominam de globalismo.

Não é devaneio ou problema de ordem psicológica, há uma fundamentação conceitual para sustentar as ideias da extrema-direita no campo educacional. Podemos concordar com ela ou não, mas existe. No cerne das teses defendidas por ela está um conceito clássico da Filosofia política, a saber: o poder paterno. Em outros termos, há a compreensão de que os pais ou responsáveis detêm o direito natural de educar as crianças e os jovens, especialmente no quesito da moralidade. A escola e a educação, sob o viés republicano e laico, ameaçam, portanto, a educação moral que é instituída no espaço privado da família, o que tem mobilizado a atenção e catalisado a energia da extrema-direita contra os/as professores/as.

Dito isso, não seria errôneo afirmar que há uma confluência entre os valores neoliberais com os da extrema-direita. Se o neoliberalismo procura imprimir um modelo educacional que sujeita a escola à razão econômica, por entender que a esfera pública é moralmente corrompida, contaminada por interesses políticos e ineficiente, a extrema-direita procura excluir o espaço público do ordenamento moral das crianças e dos jovens, privando-as ao espaço domiciliar. Não obstante, recorre a um civismo pretensamente neutro, destituído de qualquer ideologia política, e imposição dos valores morais da denominada família tradicional para todos e todas.

A sociedade onde 1% da população mundial detém 99% de toda riqueza produzida no planeta, seria coerente pensar de acordo com a tese adorniana, contida no ensaio Aspectos do novo radicalismo de direita, quando afirma que os movimentos fascistas perduram enquanto persistirem a concentração de renda. Por outro lado, concordando também com Adorno, enquanto o fantasma do desemprego tecnológico continuar rondando os lares do proletariado, mesmo em um cenário de pleno emprego e sintomas de prosperidade econômica como as vividas no país atualmente, os trabalhadores e trabalhadoras se sentirão como desempregados em potencial, potencializando, portanto, o radicalismo de direita. Somam-se ao quadro econômico, a efetivação dos Direitos Humanos prometidos pelo campo civilizacional, e aqui me incluo, não foram cumpridas plenamente em nosso país, o que tem colaborado com a promoção da desesperança e do descrédito de parcela significativa da população na esfera pública.

No caso específico da educação, penso que não é muito consistente afirmar que a crise da educação brasileira é um projeto. Nota-se que, ao longo das últimas décadas, forças políticas de viés neoliberal ou de extrema-direita se mobilizam na tentativa de constituir uma hegemonia contrária aos preceitos contidos na legislação (Constituição Federal, LDB/1996, leis, portarias etc.), impactando, sobremaneira, na efetivação do direito à educação e na elaboração e execução de políticas públicas voltadas para a área.

Se no atual contexto pode-se afirmar que a barbárie promove um verdadeiro desmanche no processo civilizacional, desbarbarizar a educação torna-se a questão mais urgente. É inadmissível que, diante do mais elevado desenvolvimento científico e tecnológico da história, a humanidade esteja em um estágio primitivo de agressividade, a ponto de odiar tudo que diz respeito ao que é público, a exemplo da escola e do direito à educação.

Por fim, resistir à barbárie no campo educacional significa denunciar, com nitidez, a gravidade dos ataques que a escola e a educação têm sofrido recentemente por parte das forças políticas que representam os interesses da barbárie. Educar para a democracia, educar para emancipação, educar contra a barbárie, eis o verdadeiro sentido da educação.


Referências

ADORNO, Theodor. Aspectos do novo radicalismo de direita. Tradução Felipe Catalani. São Paulo: EdUNESP, 2020.

ADORNO, Theodor Ludwig Wiessengrund. Educação e emancipação. Tradução Wolfgang Leo Maar. 3.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.

APPLE. Michel W. Educando à direita: mercados, padrões, Deus e desigualdade. São Paulo: Cortez, 2003.

CONDORCET. Cinco memórias sobre a instrução pública. Tradução Maria das Graças de Souza. São Paulo: EdUNESP, 2008.

DIDEROT, Denis. Plano de uma universidade. Obras I: filosofia e política. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000.

FRASER, Nancy. O velho está morrendo e o novo não pode nascer. Tradução Gabriel Landi Fazzio. São Paulo: Autonomia literária, 2021.

GATTO, Taylor John. Emburrecimento programado: o currículo oculto da escolarização obrigatória. Campinas: Kírion, 2019.

HOLT, John; FARENGA, Patrick. Ensino do seu jeito. Tradução Leonardo Araujo. Campinas: Kírion, 2017.

LAVAL, Christian. A escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público. Tradução Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2019.

RIBEIRO, Darcy. Sobre o óbvio. Marília: Lutas Anticapital, 2019.


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.

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