A educação e a filosofia brasileiras em meio a novos atores à direita e a velhos conflitos

Leonardo Diniz do Couto

Doutor em Filosofia pela UFRJ. Docente do CEFET/RJ. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Ensino (PPFEN).

Vitor Castilho Costa

Mestrando do PPFEN/CEFET-RJ. Professor de Social Studies e coordenador do Programa AP na Rio International School.

28/04/2025 • Coluna ANPOF

Em colaboração com Associação Brasileira de Ensino de Filosofia (ABEFil)
e GT Filosofar e Ensinar a Filosofar da Anpof

Para falarmos sobre os impactos da extrema-direita e do fascismo sobre a educação e a filosofia é preciso antes caracterizar, ao menos em seus traços mais gerais, estes termos políticos, que em nossas discussões públicas ganham um uso difuso e, não raro, bastante confuso. Muitos dizem que extrema-direita é o posicionamento político que puxaria mais para a direita o pêndulo esquerda-direita; ou que se trata de pessoas que, em meio a outras que se identificam politicamente com teses associadas à direita, localizar-se-iam ainda mais à direita. Seriam a direita da direita. É uma caracterização imprecisa, mas serve para um começo de conversa. Ajuda um pouco mais quando a caracterizamos como a designação de quem pretende aprofundar as teses liberais e conservadoras tradicionais. Com isso, ganhamos elementos para afirmar que se trata do grupo que conjuga, por um lado, a defesa de uma liberdade individual irrestrita entendida como um direito fundamental, rechaçando qualquer limitação dessa liberdade mesmo que por motivo de justiça social; e, por outro, a defesa do uso da força violenta para a manutenção do que é entendido como ordem.

Assim, chegamos a uma caracterização precária, mas talvez já útil a respeito do posicionamento político que é comumente acusado, no Brasil e no mundo, como ao mesmo tempo neoliberal e autoritário, reacionário, ultraconservador, nacionalista, xenófobo, transfóbico, machista, racista, homofóbico, dentre outros possíveis adjetivos. Há quem diga ainda que se trata de um grupo político, muitas vezes fascista. Essa qualificação não parece sem razão. Afinal, é possível dizer que o fascismo, na contemporaneidade, é a faceta revolucionária da extrema-direita, que rejeita explicitamente a democracia e busca impor pela força violenta o projeto político já precariamente caracterizado acima[1].

Insistimos que a caracterização a que chegamos é precária. Mas ainda assim é suficiente, visto que não buscamos realizar aqui uma análise conceitual destes fenômenos. Partindo do suposto de que a caracterização geral apresentada acima vai ganhar elementos políticos próprios em cada país em que estes fenômenos se apresentam, relacionando-se com sua história e suas tensões políticas internas, interessa-nos aqui entender que contornos tais posicionamentos políticos ganham no Brasil e que impactos tais posicionamentos têm sobre a educação e a filosofia neste país.

Via de regra, no Brasil, o grupo que é identificado com a extrema-direita reivindica para si a defesa da pátria contra a corrupção, tanto aquela que atacaria os cofres públicos e os bolsos privados via impostos, como aquela que degeneraria os valores das pessoas de bem. Interessante que, nos dois casos, tal defesa se volta contra uma caricatura de uma gente brasileira não tão brasileira assim. É uma gente que não defende a pátria, que não quer trabalhar, quer só “mamar na teta”, conseguir benefícios sociais sem esforço, que não se compromete com o progresso e nem ama a nação, gente que nem pelas cores verde e amarela, nem pelos símbolos nacionais, como a bandeira e datas comemorativas, têm compromisso. Em suma, seria uma gente que não defenderia o Brasil. E quem seria essa gente? Não há dúvida de que se trata de uma gente pobre e enegrecida; e também, claro, quem defenderia benefícios para esta gente pobre e enegrecida, como os partidos que o grupo da extrema-direita identifica como esquerda.

O diagnóstico que apresentamos aqui não traz qualquer novidade para o debate. Não é uma tese original. Na verdade repetimos a tese de Jessé de Souza que defende que a divisão mais importante no Brasil é a que divide brancos e negros, estando os primeiros predominantemente entre as duas classes sociais mais privilegiadas e com mais benefícios, quais sejam, a elite dos proprietários – detentora dos meios de produção – e a classe média; e os segundos, predominantemente entre os prejudicados e explorados por esta divisão social, a saber, a classe trabalhadora e o que Souza chama de ralé, os novos escravos, sujeitos cotidianamente à exploração de seu trabalho a preço vil, à humilhação, massacres e assassinatos. Lembramos Jessé de Souza aqui porque ele trata explicitamente da direita brasileira contemporânea e da extrema direita associando-as ao primeiro grupo. No entanto, antes de Jessé podemos certamente encontrar outras autoras e autores que já apontaram para esta divisão fundamental brasileira que, por sua vez, trouxe-nos até o momento atual com este novo ator que é a extrema direita e sua faceta fascista. Dentre estes autores e autoras, podemos citar a filósofa Sueli Carneiro com a sua tese de que opera no nosso país colonizado o dispositivo de racialidade que define, por exemplo, o que é humano via racialização e a hierarquização cromática e fenotípica das pessoas, do retinto preto no mais baixo grau de humanidade ao branco europeu no mais alto. Podemos lembrar ainda da filósofa Lélia Gonzalez e a identificação que ela propõe entre a massa marginal da sociedade brasileira, ou seja, daquele grupo visto como supérfluo e descartável para o capitalismo desenvolvimentista brasileiro e a população negra. Poderíamos citar ainda outras e outros autores. O mais importante a ressaltar aqui é que esta nova figura da política mundial, no contexto da sociedade brasileira, com sua faceta revolucionária ou não, constrói-se em meio ao conflito social nacional mais fundamental e se posiciona em um dos lados, o do opressor historicamente já consolidado, tendo como inimigo a pessoa não branca e mais vulnerável que reivindica acesso a bens e direitos que historicamente lhe foram negados. A extrema-direita é, assim, o novo ator, no velho conflito racial e social brasileiro, que se exime da cordialidade e na violência busca impor a negação e o aprofundamento das evidentes opressões fundantes da sociedade brasileira.

Feito este diagnóstico ficam mais claros alguns dos mais importantes impactos da extrema direita e do fascismo na educação e na filosofia no Brasil. O primeiro, mais óbvio e brutal é, sem dúvida, o medo de profissionais da educação e estudantes, de sofrerem violência física e perseguição advinda de integrantes e simpatizantes deste grupo político. Aqui podemos nos lembrar das ações violentas do “Escola sem Partido”, grupo alinhado à extrema-direita que perseguiu professores e professoras por todo o Brasil acusando-os vagamente de fazerem doutrinação marxista e defenderem o que eles chamavam de “ideologia de gênero” para as crianças e adolescentes nas escolas, sempre que estes apresentavam discursos críticos ao racismo, ao machismo, à homofobia etc. E este quadro fica pior quando grupos como este chegam a ter poder político. Vimos isso acontecer recentemente no governo federal brasileiro e vemos ainda em alguns Estados da federação e municípios. Neste caso, o risco de ataque físico e moral soma-se ao sucateamento, ao corte de verbas e ao desdém à manutenção destes espaços formativos dedicados à população mais vulnerável economicamente e racializada, espaços estes entendidos por eles como subversivos.

No entanto, apesar das ações violentas destes grupos serem graves e o medo perpetrado por elas se constituir como um impacto sério e importante, tais ações não representam o pior dos impactos da extrema-direita e do fascismo na educação e na filosofia. Cremos que seu pior impacto se dá sobre a prática pedagógica, por ser mais duradouro e eficaz. O impacto ao qual fazemos menção é a restrição do debate de ideias. Os profissionais da educação, ao serem vítimas de ameaça, de violência ou, às vezes, só por suporem que podem vir a ser, acabam por restringir os assuntos tratados em sala de aula, fugindo, muitas vezes, de tratar e, principalmente, de defender categoricamente os valores da diversidade, respeito e igualdade, próprios da democracia. Não polemizam, e assim evitam, portanto, por receio do que podem ser acusados, assuntos como a violência de gênero enraizada nas relações sociais brasileiras, a transfobia etc. e muitas vezes nem cogitam discutir assuntos como opressão de classe e democracia racial, centrais na sociabilidade brasileira.

Na filosofia, em particular, esta fuga de assuntos polêmicos acaba por nos levar a estruturar aulas e atividades centradas numa apresentação/discussão de conceitos, temas ou de uma história da filosofia descontextualizados, desgarrados da terra brasileira e de suas tensões, reforçando a longo prazo a sensação de que não há relação entre uma coisa e outra, a não ser tangencialmente. E até chegamos a desvalorizar as experiências mais importantes de nossas experiências de brasilidade como se não fossem dignas da filosofia.

São impactos lamentáveis. Certamente não são os únicos. Não ignoramos este fato. Apenas quisemos ressaltar que no cerne desses impactos da extrema-direita, fascista ou não, no Brasil, encontra-se o fortalecimento da negação, já promovida por exemplo pelo mito da democracia racial, de que nossa socialização neste país é violenta contra grupos racializados e vulneráveis. Tal negação é como uma chaga brasileira, compartilhada da esquerda à direita, mas que é altamente reforçada pela extrema-direita. Neste sentido, a luta contra a extrema direita e o fascismo, no Brasil, passa pela tomada de consciência de quem somos, de onde estamos e de como chegamos aqui, sem fugir dos embates mais importantes do Brasil, inclusive em sala de aula e, em particular, nas aulas de filosofia.


[1] Cf. Vital da Cunha et alli. “Extrema direita no Brasil”. Fundação Heinrich Böll, 2024


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.