A Filosofia entre juízes, bispos e capitães: sobre pobreza, resistência e formas de vida (1)

Prof. Dr. Hélio Alexandre da Silva (2)

Professor de Filosofia da UNESP/Franca

10/06/2019 • Coluna ANPOF

De Rousseau a Marx, de Kant a Rancière, a pobreza tem sido tema da filosofia, ainda que um tanto marginal. Sempre tida, ao menos na aparência, como filha bastarda do processo civilizatório, a experiência da falta e da privação não deixa de ser compreendida como um problema de real grandeza, em boa medida graças às consequências sociais que ela traz. Uma das formas de pensar filosoficamente o social é compreender que ele qualifica as relações humanas nas quais os mecanismos de reprodução e as experiências normativas estão estreitamente imbricados.

Essas experiências normativas podem ser positivas (quando contribuem para algum nível de cooperação social) ou negativas (quando aparecem como fonte de sofrimento). Na medida em que alinham-se às formas de sofrimento, fenômenos como a pobreza ganham particular interesse filosófico.

Em documento recentemente publicado pelo Banco Mundial, “Efeitos dos ciclos econômicos nos indicadores sociais da América Latina: quando os sonhos encontram a realidade”, o órgão atualiza dados sobre a pobreza no Brasil. O resultado trazido pelos pesquisadores é que, no último período, o aumento da pobreza por aqui foi de 3%. Por menos impactante que possa parecer à primeira vista, esse aumento atesta que 7,3 milhões de brasileiros desceram alguns degraus na escala social e passaram a sobreviver com até US$ 5,50 por dia, o que a preço de hoje significa algo em torno de R$ 22,00.

De fato, esse movimento não reflete exatamente um ponto fora da curva, ao contrário, as carências e o sofrimento social a que boa parte dos brasileiros estão sistematicamente submetidos cimentam a história de construção desse país. Já se atribuiu, inclusive, a um velho mandatário nacional, quando questionado sobre as formas de lidar com a questão social, uma frase que mal se equilibra entre o deboche e o autoritarismo: “para mim, teria dito Washington Luís, a questão social é um caso de polícia”. Assim, respeitando um traço já secular, poucas vezes a equação entre o político e o social foi encaminhada fora dessa métrica. No entanto, a regressão política dos últimos meses aprofundou de tal modo esse cenário que nosso presente nunca foi tão capaz de estender a mão ao que de pior houve em nosso passado.

Vista pelo ângulo das formas de crítica e de resistência ao recrudescimento político que vem aprofundando o sofrimento social no último período, é possível notar que, apesar dos recentes pesares, entre nós não há abismo insuperável ou dominação sem resto. Tanto as experiências históricas de resistência e luta popular quanto a boa literatura produzida entre nós ajudam a ilustrar esse movimento, como bem testemunha, por exemplo, o clássico Auto da Compadecida.

A pobreza, o descaso social e formas de autoritarismo são traços que ajudam a compor o pano de fundo que ilumina a saga em que Chicó e João Grilo costuram sua vida. A busca incessante por formas de lidar com os limites e a opressão dramática produzida por um ambiente de profunda privação é um dos modos de compreender a trama que envolve esses personagens. Pobres e menosprezados socialmente, tratados como vagabundos, vivem numa pequena vila com traços de urbanidade rústica no Nordeste do Brasil.

O pouco obediente João Grilo se desdobra em artimanhas para lidar com os poderosos da cidade – o padeiro e a esposa, que são seus patrões, o major (que poderia ser capitão) Antônio Morais e os religiosos que constam na peça, os quais vão do baixo ao alto clero, do sacristão ao bispo. Esse rol de personagens configura uma metáfora social – caricaturizada para o efeito de comicidade da encenação – dentro da qual as ações de Chicó e João Grilo expõem seu funcionamento. Todos os personagens envolvidos, exceto eles dois, agem conforme um amplo e difuso conjunto de valores morais que se cristalizam em normas sociais; no entanto, ao protagonizarem a cena, não apenas se recusam a se subordinar a tais normas, como, cientes delas e se sabendo excluídos, põem a nu ahipocrisia que a estrutura.

Os vagabundos Chicó e João Grilo têm na recusa aberta à opressão um modo de vida. Ainda que fragilizados pelo lugar social que ocupam, eles resistem, contrafactualmente, em ocupar o papel de oprimidos. Ante a recusa do padre em abençoar a cachorra do patrão, Grilo inventa, cria, arrisca o novo; diz que o animal pertence ao major. Como a paróquia e, simbolicamente, toda a sociedade, está sob o poder do militar, o padre muda o discurso repulsivo e de franca reprovação para o de cristão comovido, numa clara revelação de que o poder da terra suplanta o poder religioso, sendo inclusive capaz de modular a moral cristã de acordo com a conveniência.

Entretanto, a contingência nem sempre é uma aliada, e a cachorra morre antes da bênção. João Grilo, rápido, muda de planos e inventa, cria e arrisca o novo, de novo. Dizendo que a cachorra era cristã e tinha um testamento, no qual deixara dez contos de réis para a igreja, convence o padre a realizar seu enterro com missa rezada em latim. Mais uma vez o padre negará, mas ao saber da existência de um também inventado testamento, mudará o discurso. Sim, mudará o discurso tendo em vista exclusivamente o interesse privado e a manutenção de certo ordenamento normativo.

A potencialidade crítica da imaginação de João Grilo mostra o que, de fato, determina as ações dos moralmente frágeis e hipervalorizados chefes religiosos e políticos; se antes era uma “besteira”, algo “ridículo” ou mesmo proibido pelo código canônico, após a revelação do testamento, a cachorra se torna merecedora inata das honras religiosas: “que animal inteligente, que sentimento nobre!”.

João Grilo é o pobre que não adere aos favores dos poderosos; a seu modo, ele sempre resiste. Por outro lado, é pelo favor que se pautam as relações entre o clero e os ricos donos da padaria. Quando ele revela que o padre teria abençoado a cachorra de Antônio de Morais, mas não a deles, a mulher do padeiro argumenta que seu marido é “presidente da Irmandade das Almas”, uma espécie de fiador último da justiça, da moral e dos bons costumes das famílias de bem. Assim, se o padre não abençoar a cachorra, o marido não só se demitirá do cargo como não enviará um só pão para a irmandade; acresce a isso que não contribuirá com as obras da igreja e confiscará até mesmo a vaquinha, emprestada à igreja para fornecer leite. Essas justificativas reunidas terminam por convencer o padre de que é preciso enterrar a cachorra – nessa altura já morta sem ser abençoada – para que se faça cumprir o testamento do “nobre animal”.

Ao enredar os poderosos em suas artimanhas João Grilo põe a nu a hipocrisia das normas que orientam a sociedade em que vive, por isso é tratado como “safado” e “vagabundo” como todos de sua laia.

No texto de Ariano Suassuna, João Grilo é referido por várias personagens como um sujeito “amarelo”. O primeiro a fazê-lo é o padre João, religioso de moral titubeante, ao explicar para o bispo de quem se trata o tal moço que o fez confundir a esposa do major com uma cachorra: “é um canalhinha amarelo” (poderia ser um “idiota útil”) e, quando briga pelo mesmo motivo com João Grilo, afirma sentencioso: “você não passa de um amarelo muito safado” quase um comunista, arriscariam alguns viciados na hiper-interpretação própria dos nossos dias.

Alguém já disse que, no Brasil, é o favor que instiga e orienta, ponto por ponto, a incestuosa prática do compadrio, da exceção à regra e da cultura que fomenta e remunera o interesse privado. Na obra de Suassuna, ainda que relações dessa natureza sejam reproduzidas pelo bispo, pelo padre e pelo padeiro, ela não é integralmente aceita e reproduzida por João Grilo. Ao contrário, ele se insurge contra o major e leva o religioso da vez a ofender sua esposa. Ao invés de “praticar a dependência” ao representante do poder naquele momento, Grilo o enfrenta. Ele não reproduz “a cultura do interesse privado” de subserviência aos poderosos, mas alinhava atos de resistência como recurso político praticado por um pobre que, a seu modo, é crítico do poder dominante.

O espírito amarelo do pobre personagem vagabundo não se dobra ao poder do representante da justiça que oprime os mais fracos, nem das forças regressivas da religião. A pobreza o define tanto quanto a imaginação e a insubmissão.

Um tanto combalida por não mais ocupar o trono de “mãe das ciências” nem gozar de amplo reconhecimento social, a filosofia tem algo de João Grilo. Insubmissa, imaginativa, crítica, está sempre às voltas com os problemas sociais mais dramáticos, não necessariamente para resolvê-los, mas certamente para evitar a naturalização de normas sociais que aprofundam o sofrimento. Sempre haverá um esforço de reflexão, de imaginação que estende a mão, dessa vez olhando para o futuro, aos que são privados de tudo. A filosofia é capaz de procurar nos obscuros subterrâneos sociais não a verdade, mas o resultado, o produto e o reflexo dos acontecimentos que se desenvolvem na superfície.

Entre capitães, bispos e padres de um lado, e a miséria, o sofrimento e a pobreza de outro, a filosofia nos capacita a perguntar, com sua insubmissão, imaginação e crítica, qual expectativa de vida boa está no horizonte de um projeto político que, diante da inconteste ampliação da pobreza, da miséria e do desemprego, preocupa-se com o controle das formas de manifestação afetiva não hegemônicas ou com a universalização do porte de armas de fogo? Que modelo de sociedade defende quem mostra maior preocupação com as formas de manifestação de afeto do que com as formas de sofrimento social causadas pelo abismo que marca o distanciamento crescente entre ricos e pobres?

Diante de um major (ou de um capitão, tanto faz), de um mambembe guardião da justiça ou de falsos religiosos de moral duvidosa, a filosofia, com auxílio luxuoso de outras áreas do saber como a literatura e personagens como João Grilo, sempre caminhará lado a lado com a astúcia, a crítica, a imaginação e ordinariamente incomodará.


___________________________________________________________________________

(1) Agradeço os comentários sempre pertinentes de Heurisgleides Teixeira, mas assumo a responsabilidade integral pelo texto.
(2) Professor de Filosofia da UNESP/Franca