A ruína da política ambiental brasileira e a urgência de responsabilidade

Jelson Oliveira

Professor do Programa de Pos-Graduação em Filosofia da PUCPR

30/07/2020 • Coluna ANPOF

Prof. Dr. Jelson Oliveira (1)

A gravidade da questão ambiental no Brasil é tamanha que as críticas às (des)políticas do atual governo têm reunido juristas, políticos, empresários e ambientalistas de diferentes posições e com divergentes interesses. Cria-se quase uma unanimidade em torno do problema, mostrando que o assunto é tão escabroso e evidente, que a maior parte das pessoas compreende que todos perderemos muito com isso – seja em termos propriamente ambientais, seja em termos econômicos ou políticos. 

Assistimos, estarrecidos, o governo Bolsonaro e seu ministro Ricardo Salles colocando em prática a afirmação criminosa feita na reunião (também ela criminosa) do dia 22 de abril de 2020: estão aproveitando a “oportunidade” trazida pela pandemia para “ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”. Isso, na prática, significa depredação das já parcas políticas ambientais e desmonte dos órgãos de pesquisa e de fiscalização, cujas consequências são uma aceleração no esgotamento dos recursos naturais, da destruição das florestas (especialmente a Amazônica), da extinção da fauna e do genocídio dos povos tradicionais (especialmente os indígenas), em benefício das forças do agronegócio, do latifúndio, da mineração e outros genocidas, que agora têm voz decisiva no altar da pátria, no qual o sangue de inocentes continua sendo oferecido ao deus do progresso.

Desregulamentação é o nome defendido aos quatro ventos, como uma espécie de deboche às mentes mais sagazes, que não podem deixar de ver a irresponsabilidade e a sanha malevolente que está tão mal escondida sob os tapetes de veludo de tais argumentos. Ora, a regulação, agora acusada de burocracia vã, é o principal instrumento e o mais eficiente deles para provocar mudanças e impedir práticas ecologicamente inadequadas, além de contribuir para a promoção da necessária conversão da tecnologia em direção a um convívio ajustado ao meio-ambiente. Ela deve incluir, por isso, mecanismos de fiscalização, de comando e de controle que sejam eficientes e efetivos. Sendo assim, longe de significar um empecilho, o conjunto de normas, leis e instrumentos legais que formam a regulamentação ambiental, representa um incentivo a corretas práticas ambientais e são a melhor maneira de um Estado assumir a responsabilidade que lhe é própria: evitar a degradação, promover ações de defesa do meio-ambiente, punir os agressores, apoiar as populações mais vulneráveis e garantir o direito das gerações do futuro de herdarem um cenário ambiental saudável, para que suas vidas sejam ontologicamente possíveis e autênticas. 

Na medida em que o marco regulatório do meio ambiente é considerado como algo a ser ultrapassado a todo custo, o governo brasileiro faz no campo da ética ambiental o que costumamos assistir no campo da ética médica, onde os questionamentos e as advertências dos especialistas da bioética foram considerados percalços indesejáveis no caminho do progresso. O custo dessa posição, como se sabe, foi dramático, na medida em que a reivindicação por liberdade absoluta por parte da ciência levou facilmente a atrocidades que violaram a dignidade dos seres humanos e não humanos. Como em todos os casos onde a ação humana manifesta sua magnitude e sua ambivalência, também no campo ambiental a ética – e sua face “civil”, a regulamentação – não é apenas necessária, mas sobretudo urgente e obrigatória. Quando o ministro Salles, a despeito da tarefa que ele assumiu diante do país, declara que a desregulamentação é necessária porque “há uma oposição irresponsável, de ONGs e acadêmicos, contra tudo e contra todos, por ideologia ou interesses econômicos, que judicializam tudo”, ele está, ao dizê-lo, destapando o esgoto da incivilidade e da chamboíce que têm sido a regra do atual governo. Isso porque nenhuma sociedade pode, deveriam saber eles, viver sem regras e nenhum governo deveria agir sem responsabilidade. Por trás das palavras do ministro, todos sabemos, além do jaculatório sem sentido, usado – segundo a técnica pantaneira do “boi de piranha” – apenas para desviar as atenções, estão as ações práticas que incluem o fim do Fundo Amazônia, o desmonte do INPE, do IBAMA e do INCRA, o quase cancelamento das multas ambientais, a morte de ambientalistas, a premiação dos grileiros e demais agentes da destruição. O preço dessa calamidade é tão alto, tão nefasto e pavoroso, que sua gravidade demandará enorme dispêndio de esforços para que seja compreendida de todo, mas suas consequências serão tão danosas e irreversíveis que as gerações de agora terão de assumir, diante dos males futuros, o preço de sua condescendência.

O filósofo alemão Hans Jonas, autor de O princípio responsabilidade, ensaio de uma ética para a civilização tecnológica (1979) chamou atenção para o fato de que, no que diz respeito à agressão ambiental, sua gravidade e emergência prescindem de qualquer disputa ideológica ou política, porque todos, de esquerda ou de direita, sofrerão com as consequências. Para o autor, é indiferente que a agressão praticada sobre a natureza “venha da ‘direita’ ou da ‘esquerda’, que o agressor seja marxista ou burguês liberal” (2006, p. 301), pois importa o quanto a natureza pode resistir a essa agressão. Diante disso, a ética deveria, segundo ele, servir de anteparo para o avanço de qualquer sistema que colocasse em risco a vida, protegendo a humanidade de seus próprio excessos e contribuindo para que os governantes assumam suas responsabilidades. Afinal, todo governo existe para o bem da sociedade e, nos dias atuais, nesse bem estão incluídas o respeito à natureza e ela é o objeto pelo qual, segundo o “credo da moral pública” é preciso agora se “sacrificar” (2006, p. 245)ou seja: segundo a responsabilidade que lhe é própria, cabe a todo governo, em vista do cumprimento de sua missão (para o que ele existe), defender a natureza, mesmo que isso implique (como sempre é o caso) sacrificar algum aspecto do presente em benefício do futuro.

Para Jonas, quando a urgência exige a mudança de costumes, então isso só pode ocorrer “mediante a lei pública e suas sanções” (2013, p. 79), ou seja, mediante o papel do Estado. É assim que, segundo o autor, o homem público, como político vocacionado para o bem público, o qual inclui “a totalidade da vida da comunidade” (2006, p. 180), deve assumir a sua responsabilidade. Também aqui, como é sempre o caso, ter o poder é assumir a responsabilidade e “ela se estende da existência física até aos mais elevados interesses, da segurança à plenitude, da boa conduta à responsabilidade” (2006, p. 180). Isso, aliás, destaca o fato de que, sendo vocacionado para a vida pública, um tal indivíduo deve ser motivado por um afeto que o faz, em comparação à autoridade parental, “’filho’ do seu povo e da sua terra (do seu grupo social e assim por diante), por isso ‘irmanado’ com todos aqueles que compartilham esses laços – os vivos, os que virão e mesmo os que morreram” (2006, p. 183). No político deveria haver, portanto, uma “identificação emocional com o coletivo, um sentimento de ‘solidariedade’”, dado que os assuntos coletivos precisam sempre de um indivíduo assim vocacionado para que lhe sejam oferecidos rumos e orientações. 

Diante da ameaça da catástrofe climática para a qual o Brasil está contribuindo atualmente, tal responsabilidade obriga os governos a assumirem não apenas as premências do presente, mas incluírem na sua ação, a extensão do tempo futuro, como um novo objeto de responsabilidade política, mobilizado pela inédita “envergadura causal das ações modernas” (2006, p. 202). É preciso incluir o amanhã no hoje. Aliás, a própria predição é parte dessa nova obrigação à qual os governos de agora estão ligados. Cabe ao presidente da república e ao seu ministro, portanto, dadas as grandezas que estão em jogo, ver mais longe do que a maior parte da população, praticando uma “política que desvie, a tempo, a trajetória da curva em direção à catástrofe” (2006, p. 204). Ao contrário do que fez o ministro, acusando a “oposição irresponsável”, Jonas credita a ele tal irresponsabilidade, afirmando que seria o máximo da injustiça zombar daqueles que trabalham para que evitar o pior. Jonas esperaria do ministro as providências para garantir que as predições (mesmo as mais alarmistas) estivessem erradas e um silêncio respeitoso diante daqueles que, com suas forças, defendem a vida, cumprindo o vácuo deixado pelo Estado. Não é vestindo a camisa e hasteando a bandeira de um outro país que um chefe de Estado realiza sua vocação; não é assim que ele descobre e pratica o que é melhor para o seu povo. Sem assumir a sua responsabilidade, o governo brasileiro atiça os demônios da ruína e entrega a eles o que nós temos de mais importante: a rica dotação de fauna e flora, cuja beleza, fez o Brasil ser cantado de norte a sul do mundo. Sem oferecer orientações éticas para a preservação da vida, Bolsonaro, Salles e sua trupe comprovam sua falta de vocação e de lisura no tratamento da coisa pública e deixam rastros de destruição cujos sinais serão sentidos no futuro, de forma indeterminada.

Assim, ao invés de lutar contra a regulamentação, o atual governo deveria assumir a sua responsabilidade pela limitação da liberdade de escolha dos agentes ambientais, fazendo com que o Estado cumpra a sua função mais relevante, exercer o seu poder de coerção das forças que colocam em xeque a vida futura, fugindo do mero oportunismo que tem marcado as políticas atuais. Sem isso, nunca teremos inovado naquilo que é mais urgente e permaneceremos reféns da nossa própria potencialidade autodestrutiva, que nasce da ignorância e do imediatismo que murcha tudo ao redor.


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Jelson Oliveira é professor do programa de pós-graduação em Filosofia da PUCPR; membro do GT Hans Jonas e coordenador do GT de Filosofia da Tecnologia e da Técnica da ANPOF; autor de “Negação e Poder: do desafio do niilismo ao perigo da tecnologia.

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