ABOLICIONISMO: ÉTICA E FUNDAMENTAÇÃO DOS DIREITOS ANIMAIS

Sônia T. Felipe

Professora aposentada do Depto de Filosofia UFSC

16/08/2017 • Coluna ANPOF

Originado do latim abolere, abolição refere uma ação de largar ou deixar de usar, extinguir, eliminar, suprimir ou fazer desaparecer instituições, leis e tradições. A proposta abolicionista trata de pôr fim a alguma prática institucionalizada, incluindo as leis que asseguraram sua legitimidade e os costumes que a forjaram como tradição. 

Adotado pelos defensores dos animais, o termo refere o movimento filosófico iniciado por Tom Regan, com ações que visam pôr fim aos  usos, à exploração e à matança de animais para propósitos humanos. 

A abolição não negocia em parcelas a restituição do bem extorquido dos animais, nem adota a ideia de reduzir os maus-tratos ou diminuir o âmbito no qual eles são infligidos aos animais (bem-estarismo). Abolir é pôr fim à prática completa, desconstruir seus andaimes e retirar os sustentáculos morais que a amparam há milênios. Abolir é extinguir pela raiz a crença na legitimidade moral da exploração e matança de animais pelos humanos para comilança, tração, embelezamento, diversão, tratamento, higiene e atendimento a quaisquer outros propósitos. 

Já entre 1975 e 1981 Tom Regan confrontou a filosofia moral tradicional ao afirmar que os direitos morais estão diretamente vinculados ao valor inerente à vida. E, para ser respeitada por seu valor inerente, basta que ela seja vivida por um sujeito que tenha autonomia apropriada para se preservar vivo, ainda que tenha precisado de alguém para ajudá-lo nisso, por exemplo, bebês de todas as espécies. Passada essa fase, todos são sujeitos-de-su-vida. Nem humanos nem os outros animais devem ser submetidos a fins que não sejam próprios de seus éthos. 

Os direitos inerentes à vida devem ser respeitados por causa do sujeito-da-vida que ali está. É ele quem a vive, por si e para si, não para que sua vida seja servida à outra, portanto, não por conta de qualquer utilidade que porventura qualquer vida tenha para uma coletividade ou para um sujeito humano qualquer que dela se tenha apropriado. A vida não pode ser apropriada por ninguém, só é possível vivê-la. O sujeito dela não pode ter um dono.

O que há para ser abolido da moral tradicional são estas crenças e as práticas (tradições), no que diz respeito ao domínio dos humanos sobre os outros animais: a de que só vidas humanas são dignas de respeito; de que apenas as vidas humanas são levadas a efeito por um sujeito, e as demais são submetidas ou sujeitadas às forças naturais, não havendo nelas qualquer consciência ou abertura para escolhas; de que há uma espécie animal ou raça superior, pura, elevada, à qual se concede o direito sobre a vida de todos os outros animais que não nascem nela. Todas essas crenças precisam ser abolidas. 

A crença na própria supremacia frente a tudo e a todos leva os humanos a interagir com os demais no mesmo padrão dos nazistas em relação aos que não possuem genes arianos, razão pela qual Herman, personagem de Isaac Bashevis Singer afirma: “em sua atitude para com os animais, todos os humanos são nazistas.” (1). Então, é preciso abolir o antropocentrismo especista moldado na matriz cognitiva e moral da supremacia de uns sobre os outros, desdobrada nas pregas de ódio e discriminação contra sujeitos-de-uma-vida-outra por sua espécie biológica, etnia, território de origem, gênero, sexo ou classe social.

Abolicionistas veganos descartam de suas biografias conceitos e práticas como estas: a comilança de carnes, leites, laticínios, ovos e mel, em respeito à vida das abelhas, vacas, galinhas, porcas, ovelhas e éguas, fêmeas-sujeitos-de-suas-vidas, estupradas e escravizadas sexualmente. Sem a escravização sexual não há nascimento industrializado de pintos, porcos, bezerros, cordeiros, potros e larvas apis; o uso de animais em experimentos biomédicos, químicos e bélicos; em jogos e diversões; a condenação deles à prisão perpétua para serem exibidos aos humanos (circos, zoológicos e aquários); a extração de lã, pele, pelo e couro pela indústria da moda e decoração; a extração de seus hormônios e suas secreções; a monta e tração; o consumo religioso de sangue e carnes e seus “abates ritualísticos”; a função de guarda atribuída a animais detidos em domicílios humanos. Tais são os usos que tramam a matriz cognitiva e moral desenhada nos humanos, sua crença em uma supremacia genética e moral natural que, absolutamente, não corresponde à realidade animal.

O abolicionista animalista abandona o desígnio antropocêntrico segundo o qual a ética (perfeccionista, principialista) visa aprimorar o sujeito moral agente. O panorama ético se amplia e o sentido da ação moral é avaliado em função de seu resultado sobre os sujeitos-de-uma-vida (pacientes morais) afetados, os animais criados para o abate e os residentes em ambientes naturais devastados pela dieta animalizada omnis voraz.

Dor, privação e morte, infligidas aos animais submetidos à doma humana, traem o sentido original de rada, traduzido do hebraico para o latim como dominium (em português, domínio). Não se trata de um deslize, a troca do significado do termo na passagem de uma língua para outra, trata-se de uma traição aos animais. Rada não quer dizer domínio, e sim, zelo, responsabilidade, cuidado (2). Segundo Tom Regan, inspirado pelas críticas do teólogo Andrew Linzey e de outros autores à tradução de rada, seu sentido é de responsabilidade, zelo ou cuidado humanos pelo reino animal, que sempre foi bom, ”independentemente da presença humana” (3).

A concepção da supremacia e separação dos “superiores” frente aos “inferiores” nos foi legada pelo antropocentrismo especista despótico de Tomás de Aquino. Seres “superiores” devem tudo poder na busca o bem para si (4). Não havendo como provar a supremacia humana frente às demais espécies animais, Aquino dá o golpe moral ao criar o quarto reino (além dos reinos mineral, vegetal e animal): o humano. Este separatismo especista dominou a filosofia moral (5).

Os abolicionistas defendem direitos fundamentais para sujeitos-de-uma-vida: à vida; à liberdade física e psíquica (à sexualidade, à busca do bem próprio sem manejo ou  restrição, à não escravização); à expressão da própria natureza; à privacidade. Estes direitos animais barram a ingerência, a interferência e a violência sobre quaisquer animais, humanos e não humanos. É disto que trata o abolicionismo na ética prática contemporânea: do respeito ao éthos próprio a cada animal. Aliás, termo grego do qual deriva ética. 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

1 SINGER, Isaac Bashevis (1971). Enemies. New York: Farrar, Straus and Girous, 1971, pp. 256-7; apud REGAN, Tom (1982). All that dwell therein. London: University of California Press, p. 3.

2 FELIPE, Sônia T. Da hipocrisia à integridade moral. Curso de Extensão oferecido na Universidade de Lisboa em 2002, texto inédito.

3 REGAN, Tom (1983). The Case for Animal Rights. Berkeley: University of California Press, p. 8. 

4 Cf. Ibid., p. 7.

5 Cf. RYDER, Richard D. (1998). The political animal. London: McFarland, p. 14.

 

ANPOF 2017-2018

16 de agosto de 2017