Aborto, um dos direitos fundamentais da mulher

Susana de Castro

UFRJ/PPGF; Presidente da Anpof; Integrante do GT Filosofia e Gênero da Anpof

19/12/2016 • Coluna ANPOF

No dia 29 de novembro, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal surpreendeu ao suspender a prisão preventiva de cinco funcionários de uma clínica de aborto clandestina de Duque de Caxias (RJ). Composta por Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Edson Fachin, a turma firmou o entendimento histórico de que a prática, se realizada até os três primeiros meses da gestação, não é crime. Para o ministro Luís Roberto Barroso, os artigos do Código Penal que proíbem o aborto até os três meses ferem direitos garantidos pela Constituição: "os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria".

A criminalização do aborto está, portanto, errada segundo a Constituição. Mas, não é só a descriminalização do aborto que está em jogo. Esta não é uma decisão relativa somente ao aborto, pois se amplia sobre direitos fundamentais amplos, que incluem direito a políticas públicas garantidoras dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres (como contraceptivos, assistência pré-natal e, até, o aborto) e garantias para a inclusão social de seus filhos. O voto de Barroso deixa claro que é obrigação do Estado dar garantias para que a mulher tenha acesso ao serviço público de saúde e lá encontre a proteção de seus direitos e que seus filhos também possam contar com a rede pública de saúde e de educação. Sabemos que nada disso ocorre, apesar da clareza da letra constitucional. Vejamos aqui os efeitos específicos dessa decisão no que diz respeito ao aborto.

A decisão do STF representa um passo decisivo e histórico da luta das mulheres. O movimento feminista contemporâneo é composto por representantes de diversas perspectivas teóricas, cada qual com sua reivindicação específica, às vezes conflitante entre si– interseccionais (para as quais questões de gênero estão ligadas também a questões de raça, classe e sexualidade), feministas radicais abolicionistas (que são a favor da abolição, isto é, proibição, da prostituição e da pornografia), estudiosas da teoria queer (anti-abolicionistas), transfeministas, entre outras --, mas a bandeira do direito ao aborto é uma reivindicação consensual. Todas exigem a descriminalização do aborto. Precisamos, entretanto, ser mais cautelosas na comemoração da decisão do STF. Enquanto o Código Penal Brasileiro não for alterado, o aborto continua sendo um crime. O aborto só é permitido no Brasil em caso de gravidez resultante de estupro, risco de morte da gestante e feto anencéfalo. Se não se inclui em nenhum desses três casos, para realizar um aborto legalmente, a mulher terá a partir de agora a opção de entrar com uma ação na justiça. Como a Constituição está acima do Código Penal, o juiz poderá usar a decisão do dia 29 do STF que afirma que aborto não é crime e autorizar sua realização ou deixar de punir seus responsáveis. Qual a fragilidade dessa situação? Primeiro, considerando a morosidade da justiça, a gestante poderá já ter ultrapassado os três meses de gestação quando a decisão sair. Segundo, a mulher brasileira na sua

maioria não ingressa em juízo, por falta de recursos financeiros, ou desconhecimento dos mecanismos de funcionamento da defensoria pública, e assim, em defesa de seus direitos, não lança mão dos meios legais da justiça. Na sua declaração de voto o ministro Barroso falou justamente sobre as mulheres em situação social precária como as mais afetadas pela criminalização do aborto, "que não têm acesso a médicos e clínicas particulares, nem podem se valer do sistema público de saúde para realizar o procedimento abortivo". Assim, a mulher sem recursos financeiros continuará pondo em risco sua vida em clínicas clandestinas de aborto. A criminalização do aborto pelo Código Penal não consegue coibir que abortos sejam feitos. Sim, a lei não detém a prática. O abortamento é feito de modo clandestino por pessoas sem qualificação. Segundo pesquisa nacional do aborto divulgada pela revista Carta Capital na sua edição de 14 de dezembro, 503 mil brasileiras interromperam a gravidez em 2015 – uma média de 57 mulheres por hora, quase uma por minuto, e 1.300 por dia. Esses abortos são feitos em condições adversas, em banheiros, clínicas clandestinas, algumas em fundo de quintal, e através de procedimentos em muitos casos inseguros que colocam em risco a vida das mulheres. A Organização Mundial da Saúde estima que 47 mil mulheres morram anualmente por complicações relacionadas a abortos clandestinos. Ao negar acesso aos hospitais públicos, o Estado está transmitindo a mensagem de que a vida dessas mulheres não importa. A situação seria diferente se fossem a vida de 47 mil homens? Ao equiparar a mulher que aborta a um assassino comum, a lei está afirmando que a mulher é inferior ao homem, na medida em que não pode decidir sobre o seu corpo; o Estado é quem decide por ela, não importa os efeitos psicológicos de uma gravidez indesejada, ou da autonomia decisória que lhe é retirada. Em seu voto o juiz Barroso declarou que: "Na medida em que é a mulher que suporta o ônus integral da gravidez, e que o homem não engravida, somente haverá igualdade plena se a ela for reconhecido o direito de decidir acerca da sua manutenção ou não". Ele está aqui claramente defendendo tanto que sem o direito de aborto não há a igualdade plena de direitos entre homens e mulheres, como declara a Constituição Federal de 1988, quanto aquilo que todas sabem, apesar de ser fruto de um relacionamento a dois, a responsabilidade integral é sempre da mulher, pois é ela que gesta e dá à luz; “homem não engravida”.

Segundo levantamento do Anis, Instituto de Bioética da UNB, coordenado pela antropóloga Debora Diniz, a mulher que procura a interrupção da gravidez é, em geral religiosa e possui filhos. Segundo o Anis, 88% são evangélicas ou católicas. Esses dados são alarmantes, pois mostram bem a hipocrisia religiosa. Como sabemos, as religiões evangélicas e católicas são as que mais combatem a descriminalização do aborto, como mostra a ultima campanha eleitoral para prefeito da cidade do Rio de Janeiro. Um dia após ser eleito prefeito do Rio de Janeiro, o bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, Marcello Crivela, do PRB declarou que "O que o povo do Rio determinou nesse momento das urnas é que as pessoas são contra liberação das drogas, legalização do aborto e a discussão de ideologia de gênero nas escolas. Isso foi dito na minha eleição. Isso não se trata de conservadorismo. Pelo contrário. São valores e princípios da nossa cidadania que emanam do povo e o político precisa defendê-los. Precisa ser portador desses valores. Valores da família e da vida". Esta fala do Crivella é uma manifestação clara do fundamento religioso que entra como elemento na disputa por cargo político. Ele se coloca como alguém que defende a família e a vida, leia-se, a família como tradicionalmente conhecida, composta por um casal heterossexual, e como defensor da vida, isto é, da ideia de que a vida começa no momento da concepção. Como mostra Julio Córdova Villazon em “Velhas e novas direitas religiosas na América

Latina: os evangélicos como fator político”, no início do século XXI houve um enorme crescimento na América Latina de organizações evangélicas “pró-vida” e “pró-família”, cujo objetivo fundamental seria frear o avanço da “agenda gay” (p.ex. união civil de casais do mesmo sexo) e da “ideologia de gênero” (p. ex. descriminalização do aborto) nas legislações desses países. Hoje, no Brasil, a questão da “ideologia de gênero” abarca muito mais temas do que a descriminalização do aborto, por isso Crivella separou em sua fala as duas coisas. Ela envolve a proibição do debate acerca da construção social dos comportamentos dos sexos masculino e feminino, da expressão plural da sexualidade, entre outras coisas. Villazon mostra que essas organizações evangélicas “pró-vida” e “pró-família” mantêm forte ligação com organizações e líderes da direita cristã dos EUA. Foi nesse país que essas organizações surgiram com o intuito claro de frear os desdobramentos da contracultura das décadas de 60 e 70: a pílula anticoncepcional, a libertação sexual das mulheres, a descriminalização do aborto etc. A presença forte da chamada bancada da bíblia no Congresso brasileiro é muito provavelmente fruto deste investimento financeiro pesado das organizações de direita cristãs norte-americanas no Brasil. Provavelmente sonham com o dia em que um bispo evangélico se tornará presidente do Brasil e conseguirá pôr no STF juízes ainda mais conservadores, contrários às pautas progressistas. Por tudo isso, a decisão do STF é histórica e representa uma reação ao avanço do fundamentalismo religioso em todas as esferas da política.

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#voltadilma

19 de Dezembro de 2016.

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