AS VIRTUDES DO CÉTICO - Homenagem ao professor Oswaldo Porchat

Prof. Dr. Waldomiro J. Silva Filho

UFBA, CNPq

07/12/2017 • Coluna ANPOF

Foi em uma manhã qualquer de setembro de 2010. O telefone tocou sem insistência ou urgência. Era um dia agradável, luminoso, com a brisa peculiar aos setembros em Salvador. Do outro lado, aquela voz poderosa e cerimoniosa. Porchat soubera por alguém que eu tinha retornado de um longo período no exterior e queria notícias. Havia mais de um ano que não nos falávamos. Contei-lhe sobre minha viagem de modo direto, sem rodeios: passei um período em uma excelente universidade, um dos melhores departamentos de filosofia do mundo, mas eu me sentia destroçado por dentro, pois estava claro para mim que, ou eu realmente não tinha qualquer talento para a filosofia, ou a filosofia não poderia me oferecer o que eu estava procurando – o fato é que não alcancei e não tinha qualquer esperança em alcançar algum conhecimento ou sabedoria ou tranquilidade da alma. Não era um lamento, mas eu me sentia seguro para falar de modo sincero com ele.

Porchat me ouvia em silêncio. Talvez por educação, ele me falou que esse sentimento já lhe ocorrera. Logo depois, num tom surpreendentemente grave, Porchat antecipou que o que estava para me dizer, com certeza, iria me decepcionar. Ele se descobrira um cético rústico. A conversa seguiu num ritmo amistoso, bem-humorado, mas avançava por um terreno realmente profundo e áspero da filosofia, com seus aspectos exegéticos, técnicos. Para mim era surpreendente que alguém como Porchat pudesse dar ouvidos às minhas aflições intelectuais e, no mesmo passo, partilhar comigo suas ideias.

Não posso estar seguro do tempo que durou essa conversa. Um pouco antes de nos despedirmos, Porchat se queixou da saúde e da imensa dificuldade que tinha para trabalhar e que talvez não voltasse a escrever novamente. A publicação de “A noção de phainómenon em Sexto Empírico” pela Analytica (vol. 17 n. 2, 2013, p. 291-323) alguns anos depois contrariou seu prognóstico, testemunhando o vigor da sua inteligência e dando corpo a muito do que ouvi naquela manhã de setembro.

Depois daquele dia, ainda nos falamos outras vezes ao telefone e pessoalmente em São Paulo em um evento organizado por Plínio em sua homenagem. Naquele evento eu apresentei um trabalho no qual eu discutia a grande importância dos seus trabalhos para a minha vida; não apenas para minha carreira ou para as minhas pesquisas, mas para a minha vida, uma vez que, para mim, a filosofia sempre foi um meio para eu me colocar em contato com o sentido da minha própria existência.

Custou para eu entender por que Porchat me tratava de modo tão acolhedor e respeitoso. Eu não pertencia ao grupo dos estudantes da USP e UNICAMP que ele formou nem dos professores que compunham um seleto círculo filosófico; ao contrário, minha formação e meus vínculos estavam distantes desses centros de excelência. Meu modo de fazer filosofia nunca teve a sofisticação e requinte daquele círculo; meu trabalho sempre foi um modo tateante, aflito, confessional de me embrenhar por perguntas para as quais, ao final, desisto de encontrar uma resposta satisfatória. Mesmo assim, Porchat me recebeu entre seus interlocutores: não que eu tivesse qualquer coisa especial ou autorizada para dizer. Então compreendi: Porchat tinha uma das mais valiosas virtudes que um filosofo pode cultivar: para além da autoridade intelectual e da técnica, sem as dispensar, era generoso e lhe era inconcebível ceder à arrogância e à prepotência; por isso, ele acolhia aquele (como eu) que se lançasse na arena da filosofia pelo caminho do diálogo sincero, honesto, aberto. Como poderia existir a filosofia sem o diálogo?

Uma pessoa que tenha convivido com Porchat – e aprendido algo com sua filosofia –, para seguir na filosofia, deve concebê-la como uma atividade que envolve excelência acadêmica e generosidade, empatia, compaixão e interesse por outras pessoas. E como haveria um diálogo tipicamente filosófico – cujo propósito é um bem intelectual, seja a verdade, o entendimento, a sabedoria – se os participantes não possuem virtudes como as de Porchat?

 

ANPOF 2017/2018

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