Coluna Anpof - Especial Mês da Consciência Negra "Estética e Filosofia da Arte Africana e a Legitimidade das Pesquisas em Teorias Africanas"

26/11/2020 • Coluna ANPOF

Naiara Paula Eugenio

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ladimi Oke (à direita) observa seu pai Gbetu Asude (à esquerda), trabalhando em uma figura em latão. Ilé-Ifè, Nigéria, 1971. Foto de Babatunde Lawal 2 .

Nos últimos anos, tenho me debruçado em pesquisar a origem da Arte Africana, mais especificamente da arte Yorubá. Um trabalho que começa bem inocente, mas que está servindo para me alertar sobre algo importante: a academia brasileira não está interessada  em nenhuma Filosofia que não seja branca e ocidental, não está interessada sequer em entender como filosofia.

No meu mestrado em Crítica e História da Arte, o projeto falava de uma “Arte de Terreiro”, de uma filosofia feminina e preta. No campo da Arte a bibliografia era abundante, mas poucas pessoas pretas e de candomblé falavam de si mesmas. Então, decidi sair às ruas e procurar por essas pessoas que produziam, mas que o sistema não permitia estudar, ou se estudar. Onde estavam as pessoas pretas como produtoras de pensamento sobre o belo na arte? Nesse caso, elas estavam dentro dos terreiros de candomblé, nos ateliês espalhados pela cidade, nas feiras de rua, no mercadão de Madureira. Existia um mercado de arte paralelo ao mercado de arte branca, um mercado vivo e fluente. Escultores, pintores, músicos, dançarinos e toda sorte de mente criativa que direcionava seu trabalho para a cerimônia do candomblé e para agradar o gosto das pessoas que participavam das cerimônias e ou vivenciavam a cultura Africana Brasileira mais intimamente. Entendi com a pesquisa que o barracão, onde acontecem as festas do candomblé é uma galeria de arte. A festa é pensada meses antes, na parede esculturas feitas por artistas que muitas vezes trabalham exclusivamente para as demandas do terreiro, noutras, estendem seus trabalhos às galerias e colecionadores desse tipo de arte. Artes diversas, feitas por ferreiros, costureiros, escultores, fotógrafos... Trabalhos de arte que sinalizam origem, ritual, identidade… Vasos esculpidos do barro, fotografias de linhagens, tecidos e flores escolhidos com esmero para dar sentido estético ao conjunto. Todos esses trabalhos de arte são inspirados nos itans, fragmentos filosóficos Yorubá. Os itans contam a origem do mundo, dos orixás, das pessoas, dos animais, de relacionamentos humanos e etc. Os itans são a memória ancestral da comunidade de terreiro e podem explicar o conceito de guerra, de paz, amor, beleza, comunidade e etc. Todos assuntos caros à Filosofia. Aqui, mais uma vez, pude ver que estava tudo ali, mas num lugar outro que não o que chamávamos de convencional, o convencional era o circuito da Filosofia da Arte branca. Então, se existia um meio de pesquisar de forma acadêmica nossos saberes, era isso que eu queria fazer. Mas no Brasil, para a vergonha da comunidade acadêmica, a academia desconhecia a Filosofia Africana. Na minha primeira viagem à Filadélfia, nos EUA, com alguns professores de Temple University, fiquei envergonhada com a surpresa que tiveram quando eu disse que não estudamos oficialmente (com matérias na grade curricular) Filosofia Africana. Não estudar Filosofia Africana era como uma falta intelectual e inferioridade do currículo. Felizmente, isso aos poucos vem sendo corrigido. Porém, muitas vezes fui interpelada com dizeres como “Por que você não vai para antropologia?”, “A África não tem Filosofia”, “Estética é um produto do ocidente, não Africano” ou mesmo dizeres que afirmavam que a África não tinha uma tradição acadêmica e, por isso, não fazia sentido agregar tais reflexões ao continente. Pois bem, então este artigo se baseia em responder a estas perguntas.

A intenção de me realocar na Antropologia e não nas artes, baseava-se na ideia de que Africanos não fazem Arte. A Arte Africana só poderia ser validada pelo circuito ocidental, mas não estudada ela mesma com suas próprias teorias. Era preciso submetê-la aos métodos brancos ocidentais de análises e incluí-la em seu circuito. O ocidente não decidiria o que é arte africana, mas a transformaria em arte, o que é muito mais profundo e perigoso. Claro que a essa altura nós já tínhamos passado pela arte moderna, por exemplo, que sabidamente se influenciou da Arte Africana, já tínhamos presenciado grandes exposições no Brasil como, mas não somente, a Arte da África, do CCBB em 2004; diversos livros de Arte Africana já tinham sido publicados, sem dizer dos grandes museus como o Britânico, de Berlim, do Louvre, o Museu da Filadélfia, do Brooklyn, o Quai Branly... E isso para dizermos assim de rápido só para ilustrar. Também já tínhamos especialistas em arte brasileira requisitados e com livros publicados mesmo no Brasil. Então por que ainda tínhamos que enfrentar tanta incredulidade quanto aos estudos das Artes e das Filosofias Africanas no Brasil? Tenho duas respostas, mas a segunda é parte intrínseca da primeira. A primeira é o racismo. Não importa o quanto a África se imponha, no Brasil, onde o racismo é estrutural e institucional, assuntos relacionados às pessoas Africanas descendentes sempre terão que enfrentar uma resistência para se desenvolver. Ainda que sua verdade filosófica esteja às vistas, as instituições não estão prontas a permitir que esse conhecimento seja parte do currículo acadêmico. A segunda e, muito evidente, é que nesse caso específico, era uma mulher preta, numa instituição de ensino superior de qualidade, contando a história de seu próprio povo. Para o Brasil isso é uma afronta. Na minha voz, a África não estava sendo peneirada por olhos brancos, eu não era uma peneira por onde a “arte” africana passaria e viraria enfim Arte, eu não era o circuito branco, eu não tinha a tal da legitimidade. Eu estava querendo contar a Filosofia e a História da Arte Africana nos seus próprios termos. Mas eunão estava fazendo absolutamente nada novo, o racismo que é o mesmo.

“A África não tem Filosofia”. Bem, essa é a argumentação mais inocente que o racismo brasileiro poderia produzir. Uma acusação que, inclusive, anula os princípios filosóficos e, claro, põe em dúvida a capacidade intelectual de quem profere a sentença. Mas, o racismo é audacioso. Prefere negar a própria Filosofia a aceitar a potência que é a África. Filósofos como Heráclito, Sócrates, Platão, Pitágoras etc. passaram muitos anos de suas vidas aprendendo Filosofia em Kemet, o Egito Antigo, não é coincidência que Sócrates nada escreve e que Heráclito tem suas viagens filosóficas com a água, já que aprendia filosofia à beira do rio Nilo e participava do pensamento crítico e criativo dos africanos sobre a natureza. Mas isso é uma longa história. O cerne dessa questão, a meu ver, é a negação daquilo que sabemos ser Filosofia e que está no núcleo das reflexões Africanas: amor pela sabedoria, lapidação da palavra, reflexão sobre o ser, ética, sobre o mundo, etc. Que pessoa filosófica teria coragem de negar, por exemplo, as máximas de Ptah Hotep, filósofo vizir que se acredita ter escrito na 12° dinastia egípcia, como filosofia? Uma pessoa racista. Como já citei antes, a Filosofia Yorubá não fica atrás, seus itans, fragmentos filosóficos, tratam dos mesmos assuntos e tem as mesmas intenções.


“Estética é um produto do ocidente, não Africano”, sabemos que o conceito “Estética” foi formulado no século XVIII, e todas as reflexões filosóficas que foram chamadas de “Estética”antes e depois do sec. XVIII tinham observáveis elementos de semelhança a este conceitoformulado. Não é diferente no continente Africano. O conceito de beleza na obra de arte éutilizado desde a criação das pessoas humanas. Para os Yorubás, cada pessoa foi criada como obra de arte e a beleza dessa vida é perseguida e celebrada durante todo o processo de vivência em sociedade, assim também nas obras de arte não humanas. Beleza é um conjunto de percepção que desenvolve emoções positivas diversas e o ápice é o prazer do bem viver em comunidade. Ou seja, beleza tem necessariamente um fator material e o imaterial, o imaterial é a lapidação do bom caráter. Portanto, aquilo que é bom é belo. Usamos a palavra estética, aqui do ocidente, para traduzir uma estrutura filosófica semelhante.

Bem, o quarto argumento chega ser pífio, todos nós sabemos que as primeiras universidades do mundo foram criadas no continente Africano. No Marrocos, a Al-Qarawiyyin foi fundada em 859 da Era Comum. E essa é ainda relativamente jovem. Podemos citar as Per Ankh, no Egito Antigo, que é confundida pelos ocidentais como casas religiosas ou de magias, no sentido de que magia é diferente de ciência, que eram grandes centros de aprendizados que incluía conhecimento de astronomia, medicina, matemática, de física super avançada etc. Na Yorubalândia, sempre foi um costume se reunir para aprender, jovens artistas, por exemplo, são treinados para dominar as técnicas estilísticas de seu grupo, leva anos, e eles precisam aprender a dominar os padrões estéticos da comunidade. Essas obras de artes passam pelo crivo de pessoas que tem um grau de sabedoria elevado, o filósofo da arte, chamado amewa, que é a figura que investiga a beleza nas obras de arte. Também existem instituições chamadas de escolas de iniciação, os Poros, “em muitas partes da África Ocidental, "Mukanda" no sul do Zaire e "Goma" (entre os Lovedu do Transvaal) que educam os jovens sobre a história, ética e patrimônio cultural da sociedade, para que, quando adultos, funcionem efetivamente dentro de seus costumes e se abstenham de atos que possam ameaçar sua existência.” (LAWAL, 1996.) 3 . Evidências não nos faltam e, nós filósofas e filósofos pretas e pretos brasileiros, continuamos no caminho de Estudar África nos seus próprios termos.

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1 Naiara Paula Eugenio é bacharel e licenciada em Filosofia, mestre em Crítica e História da Arte e doutoranda em Filosofia pela UERJ, se formou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro. Tem um projeto de postais chamado “Arte de Terreiro”. É escritora romancista com os livros “Ausência” e “Primavera” publicados. É curadora de arte e estende seus interesses a mídia de artes, dança, literatura, teatro, cinema, artes visuais em geral. Na filosofia, pesquisa o feminino filosófico na Estética e a origem da obra de arte Yorubá. É também pesquisadora nos laboratórios Geru Maa – UFRJ e LLPEFIL, núcleo Filosofia Africana – UERJ. www.naiarapaula.com, @naiarapaula.e, naiarapaula.e@gmail.com

2 LAWAL, Babatnde. Visions D’Afrique Yorubá/ Babatunde Lawal. - Milan: 5 Continents Editions, 2012.

3 LAWAL, Babatunde. The Gèlèdé Spetacle: art, gender, and social harmony in an African Culture/ Babatunde Lawal. - Washington: University Washington Press, 1996.