COMO FAZER TEORIA POLÍTICA COM FOUCAULT? – O debate sobre a liberdade nas obras de Foucault

Karsten Schubert

University of Duisburg-Essen

19/06/2017 • Coluna ANPOF

Um dos problemas mais duradouros na discussão sobre Foucault tem sido o problema da liberdade. Mais precisamente, a questão é a seguinte: como a liberdade e a resistência podem ser pensadas e explicadas em uma teoria do poder e da subjetivação?

Abordarei esse problema não falando sobre o próprio Foucault, oferecendo uma nova interpretação dos seus escritos, por exemplo. Em vez disso, sustento que o problema pode ser abordado apenas nos detendo sobre o debate sócio-filosófico desencadeado por suas obras. O problema da liberdade não tem origem em Foucault, mas foi antes articulado nas discussões de sua obra por teóricos da política. Essas interpretações, mediante a construção do problema, vão além da mera exegese. São obras filosóficas elas mesmas complexas e enquanto tais são o principal objeto da minha análise.


O debate sócio-filosófico sobre a liberdade nas obras de Foucault começou quanto teóricos da política como Jürgen Habermas, Nancy Fraser e Charles Taylor trataram Foucault como um deles, como um teórico da política, e o criticaram por ele oferecer uma explicação implausível da liberdade, por conta de seu conceito nietzschiano de poder. Outros intérpretes, ao mesmo tempo interessados em teoria política e simpáticos a Foucault, propuseram interpretações de sua obra com vistas a construir uma teoria coerente da liberdade no interior da estruturação foucaultiana da subjetivação e do poder. Reconstruo nesse texto versões exemplares dos três principais tipos de abordagem para tornar Foucault um teórico da política coerente e os critico por não serem capazes de resolver o problema da liberdade que eles visavam resolver, propondo uma nova abordagem própria. As três abordagens são:

1. “Foucault corrige a si mesmo”. Tomo a obra Eine Kritik der politischen Vernunft [Uma crítica da razão política] (1997), de Thomas Lemke, como exemplar desta hipótese. Foucault, conforme argumenta Lemke, possui um conceito deficitário de liberdade em sua obra genealógica, mas ele corrige seus erros e desenvolve um conceito coerente de liberdade em suas obras tardias, especialmente nas aulas sobre governamentalidade, nos volumes 2 e 3 da História da sexualidade, no importante artigo “Sujeito e poder” e em algumas entrevistas. A estratégia é a mais comum e inquestionada no debate corrente; pode-se encontrar a “tese da correção” em muitos artigos, monografias e introduções a Foucault; pode-se considerar esta a leitura padrão da teoria política de Foucault.

2. “Foucault critica de modo coerente”. Tomo como exemplar dessa abordagem a obra de Martin Saar intitulada Genealogie als Kritik [Genealogia como crítica] (2008). O método da crítica genealógica de Foucault opera com dramatizações retóricas. Suas declarações sobre como o poder determina os sujeitos estão entre estas dramatizações e não pretendem ser teoria social; portanto, não constituem um problema de teoria social. Além disso, a crítica genealógica presume que os leitores são livres o suficiente para serem abordados por ela e potencialmente transformar a si mesmos.

3. “Foucault não é suficiente”. Tomo como exemplar dessa hipótese a obra The politics of ourselves [A politica de nós mesmos] (2008), de Amy Allen. Para compreender a liberdade no âmbito de uma estrutura da subjetivação, temos de recobrar a capacidade de diferenciar entre subjetivação repressiva e subjetivação emancipadora. Esse projeto não é incompatível com o de Foucault, mas não pode ser realizado apenas mediante uma reconstrução de suas obras. Ele pode ser levado a cabo mediante uma combinação entre o tratamento que Foucault dá do poder e o tratamento que Habermas oferece da autonomia.

Chego agora à análise e à crítica interna dessas três abordagens.

1- Foucault corrige a si mesmo

Minha crítica desta abordagem consiste em indicar que ela funde diferentes conceitos de liberdade. O problema da liberdade descrito em Vigiar e punir é o problema de uma determinação do sujeito pelo poder. O sujeito é apenas um efeito do poder, é produzido por ele, não tem atividade própria e, portanto, não tem liberdade; em suma, é determinado pelo poder. Este problema pode ser bem resolvido pela referência às obras tardias de Foucault. Sua noção refinada de poder como “governo” pressupõe atividade do governado; ademais, em “Sujeito e poder” ele assinala que o poder sempre pressupõe liberdade, o que atesta que os sujeitos não são determinados pelo poder, na conceituação de Foucault.

Mas há outro problema. Os estudos sobre governamentalidade indicam que mesmo a liberdade sendo pressuposta pelo governo, este não é o tipo de liberdade que alguém desejaria, mas antes uma ferramenta mais sutil de dominação que as disciplinas de Vigiar e punir. As estratégias da governamentalidade até incorporam a resistência. Não pode ser traçada uma linha divisória clara entre a liberdade para resistir ao poder e a liberdade requerida e estimulada pela governamentalidade. Além disso, as tecnologias do eu (self) que Foucault analisa na História da sexualidade não são simplesmente aspectos da liberdade ausentes em seus estudos anteriores, como alguns comentadores sustentaram. Antes, Foucault indica a historicidade das tecnologias do eu (self). Quais tecnologias do eu (self) um sujeito dado pode desenvolver e usar depende de como ele foi tornado um sujeito, de como foi subjetivado. A qualidade da liberdade de que dispomos depende do poder e do processo de subjetivação. Esse é um problema inteiramente diferente do da determinação. Eu o chamo de problema da subjetivação.

Uma maneira de lidar com o problema da subjetivação já nos foi oferecida por Foucault. A crítica genealógica busca explicar como nossos pensamentos, valores, desejos e corpos são influenciados pelo poder tão profundamente que podemos nem mesmo ser capazes de perceber isto. A crítica genealógica busca desnaturalizar e colocar em questão o que presumimos como evidente. Isto pode ser expresso na linguagem da liberdade: o conceito de liberdade apropriado para ser uma resposta ao problema da subjetivação é a crítica. Em outras palavras, a liberdade pode ser definida como a capacidade de refletir criticamente sobre a própria subjetivação, para se emancipar dela (o que significa se emancipar de si mesmo) com vistas a se transformar em direções antes impensáveis.

Este conceito de liberdade – liberdade como crítica – é um conceito muito exigente. A capacidade para praticar tal reflexão não pode ser pressuposta no sujeito, pois o próprio conceito de subjetivação assevera que não há nada no sujeito anterior à subjetivação.

Aqui fica claro porque a tese da correção não funciona. O conceito de liberdade que pode ser explicado por meio do quadro antiteórico de Sujeito e Poder é apenas um fraco conceito de liberdade: liberdade como a possibilidade de agir sempre de forma diferente. Isto serve bem para resolver o problema da determinação – que não é um problema interessante em um primeiro plano. O problema da subjetivação apenas pode ser resolvido pela explanação da liberdade como crítica. Interpretar a liberdade como uma possibilidade de agir de forma diferente não é suficiente. Algo além é necessário para explicar a liberdade em um sentido mais forte.

O que falta é uma diferenciação entre diferentes formas de subjetivação. Porque a liberdade como crítica só pode resultar de uma certa subjetivação, esta subjetivação tem de ser analisada. Proponho chamá-la de subjetivação crítica como oposta à subjetivação repressiva. Subjetivação crítica é a subjetivação que permite que o sujeito pratique liberdade como crítica de sua própria subjetivação.

Acredito que este problema prevalece em muitas interpretações de Foucault. Sem diferenciar os problemas da determinação e da subjetivação não é possível fazer a distinção entre a liberdade de agir de forma diferente e a liberdade como crítica. Por que, podemos perguntar, Lemke e outros intérpretes não fazem esta distinção?

Minha hipótese é de que isto é causado por uma leitura anti-institucionalista de Foucault. Em seu trabalho posterior, Foucault diferencia poder de dominação, descrevendo o poder como um jogo relacional livre e a dominação como um estado de coisas fixo. Basicamente, dominação é ordem e o poder um estado fluido. A normatividade desta distinção (poder livre vs. Dominação) é dirigida para menos ordem. Para explicar liberdade como crítica, temos que diferenciar distintos regimes de acordo com seus efeitos. Sugiro que pensemos sobre se determinadas formas de governo (ou dominação) podem subjetivar de forma a instanciar a liberdade. Esta forma de crítica – diferenciando normativamente diferentes formas de governo – é bloqueada pela distinção de Foucault entre poder e dominação, porque ela caracteriza, geralmente, governo e dominação como ruins. Existe, contudo, uma leitura mais institucionalista em “O que é a crítica?”, de Foucault, em que ele diz que a crítica concerne a ser governado de forma diferente e não a não ser governado de forma alguma.

Minha tese é a de que se se segue a leitura anarquista, então pode-se lidar unicamente com o problema da determinação, o que implica dizer que se pode explicar a liberdade como agir de forma diferente. Este, por sinal, é um clássico conceito negativo de liberdade, porque ser livre é definido como ausência de coerção, ausência de governo e dominação. Ou pode-se seguir a leitura institucionalista e fazer o que a teoria política clássica faz: diferenciar formas de governo normativamente. Assim se pode lidar com o problema da subjetivação, porque permite explicar a liberdade como crítica como um efeito da subjetivação crítica mediante o governo.

Pode-se encontrar algumas evidências para ambas leituras em Foucault. A anti-institucionalista é hermeneuticamente mais fiel ao espírito de suas obras e à sua metodologia da genealogia. Ao voltarmos à segunda abordagem (que chamei de “Foucault critica coerentemente”), ficará claro que esta aderência à genealogia é uma outra explicação para a incapacidade da leitura anti-institucionalista de resolver o problema da subjetivação.

2 Foucault critica coerentemente

Em sua reconstrução da genealogia como um método robusto, Martin Saar assinala como isto realmente funciona. Os textos genealógicos apresentam aos leitores sua própria história em uma estrutura de poder, o que indica ao mesmo tempo a violência e a contingência do atual estado de coisas, abordando-as em um nível existencial. A leitura de um texto genealógico faz o leitor refletir de modo radical e fundamental porque isso coloca a própria identidade em questão. Ao se dirigir ao leitor desta forma ele faz os conceitos-chave ficarem borrados, especialmente a liberdade. A genealogia não reivindica que em uma situação XY você não seja livre, mas questiona a diferença fundamental entre liberdade e não-liberdade. Esta é a razão pela qual isto é tão chocante e efetivo retoricamente.

A melhor compreensão de como a genealogia trabalha fornece duas razões para se afastar dela, dado que o objetivo é resolver o problema da subjetivação. Primeiro, todo o problema da subjetivação e da busca por uma clara definição de liberdade já é contrário ao método genealógico de borrar conceitos. Não se pode esperar obter um conceito claramente definido quando se trabalha dentro dos limites de um método que é direcionado contra definições normativas.

Segundo, a premissa da leitura anti-institucionalista é uma consideração totalizante do poder político e do conhecimento modernos. Ambos são considerados conectados para nos tornar não-livres; eles são a dominação que tem de ser superada para que haja liberdade. Toda forma de governo e toda forma de conhecimento científico são consideradas repressivos, incluindo a teoria política normativa. Embora estas figuras adornianas possam certamente ser encontradas na genealogia da governamentalidade moderna e da normalização das ciências humanas de Foucault, elas não devem ser compreendidas como teoria social, mas como uma dramatização retórica necessária para o efeito de nomeação existencial da genealogia. Disto se segue que embasar uma teoria política crítica nesta consideração totalizante está errado: isto deturpa o status da intervenção.

Uma vez que a abolição da teoria política normativa é apresentada não como o cerne social-teórico do pensamento de Foucault, mas como uma dramatização retórica, é possível lançar um olhar mais complexo e fazer a questão que antes era proibida e que só pode ser dirigida ao problema da subjetivação: como os regimes de subjetivação podem ser diferenciados de acordo com o fato de a subjetivação instanciar ou não a capacidade de reflexão crítica da subjetivação nos sujeitos?

3 Foucault não é suficiente

Até agora sustentei que a liberdade como crítica só pode ser abordada por meio de uma teoria política normativa, que é rejeitada por Foucault. Esta é também a premissa de Amy Allen, que sustenta que uma síntese entre Foucault e Habermas soluciona este problema. Detalhes a parte, o problema da abordagem de Allen é que ela situa a liberdade como crítica nos contramovimentos de esquerda, focando nas críticas feminista e queer.

Embora concorde que certamente existe uma probabilidade maior de encontrar reflexão crítica nos projetos políticos de esquerda que nos conservadores, situar a liberdade em um projeto ético-político particular é um passo atrás em relação ao nível de reflexão dos pós-fundacionista de onde Foucault parte. Nenhum projeto ético-político particular tem acesso privilegiado à verdade, e todo projeto político é potencialmente repressivo. A hermenêutica da suspeita não pode ser suspensa em um âmbito ou um grupo social predefinido, mas tem de ser institucionalizada em todo lugar e em todo momento. Acredito que o único modo de fazer justiça à hermenêutica da suspeita de Foucault em uma teoria da liberdade é considerar que a própria liberdade é sempre contestada e refletir sobre os próprios processos de contestação em uma teoria da democracia pós-fundacionista e pluralista.

Considerando tal abordagem, a diferença liberal entre moralidade e ética aparece mais uma vez. Toda teoria do conflito tem de discutir aquela que ainda pode ser universalizada no estado geral de desacordo: a moralidade em vez da ética. Afirmo que liberdade como crítica não deve ser definida apenas como o que de qualquer forma os progressistas e da esquerda fazem, mas deve ser tomado um lugar normativo para arriscar uma teoria da democracia. A liberdade como crítica pode então servir como um princípio normativo que ainda pode ser universalizado em uma teoria política pluralista pós-fundacionista.

Em suma, se alguém levanta questões de teoria política, obterá respostas na linguagem da teoria política; o permanecer fiel a estas questões conduz a um afastamento da ortodoxia do método ortodoxo. Isto, contudo, pode ser bastante produtivo, não apenas para uma compreensão sistemática da liberdade nas obras de Foucault, mas também como um ponto de partida para uma nova discussão sobre o conceito apropriado de liberdade na teoria política.

 

 

1- Este texto foi apresentado originalmente na Foucault@90 Conerente, na University of the West of Scotland, em junho de 2016, com o título Subjectification through Institutions: The debate about freedom in the works of Foucault [Subjetivação mediante instituições: o debate sobre a liberdade nas obras de Foucault]. Eu o ofereci para publicação na Coluna Anpof por sugestão de meu amigo Prof. Dr. José Crisóstomo de Souza, da UFBA. O texto apresenta alguns argumentos chave de minha tese intitulada Freiheit als Kritik. Die sozialphilosophische Debatte um Freiheit bei Foucault [Liberdade como crítica. O debate sócio-filosófico sobre a liberdade nas obras de Foucault] (Universidade de Leipzig, 2016), que será publicada em alemão em 2017 (Texto traduzido por Nádia Junqueira Ribeiro e Adriano Correia).

 

 ANPOF (2017-2018)

19 de Junho de 2017