CRIACIONISMO: CIÊNCIA, RELIGIÃO OU IDEOLOGIA?

Wendel de Holanda P. Campelo

Doutor em Filosofia (UFMG)

16/06/2020 • Coluna ANPOF

Wendel de Holanda P. Campelo*

Muitos cientistas e filósofos tendem a tomar a oposição entre religião e ciência como sendo o ponto central da querela entre criacionismo e evolucionismo, no entanto, isso é somente uma maneira parcial de enxergar o problema. Os criacionistas hoje em dia não estão mais tão preocupados em rivalizar com a ciência; digamos que eles já tenham "evoluído" quanto a esse ponto. O que eles querem, na verdade, é que seu dogma religioso se torne também um dogma científico.

Um bom exemplo disso é a teoria do "Design Inteligente" criada como alternativa ao evolucionismo [1]. Antes de tudo, é importante notar que não existe propriamente um debate acadêmico real entre criacionistas e evolucionistas, mas somente uma tentativa, insuflada por esse ambiente de pós-verdade, de alguns seguimentos da sociedade em questionar a validade da teoria darwiniana. Neste contexto, a fé religiosa torna-se uma poderosa ferramenta de desinformação, cujo apelo às crenças e às emoções são sobrepostas à avaliação racional [2]. Em contrapartida, muitos desqualificam o criacionismo simplesmente como uma espécie de pseudociência ou charlatanismo. Porém, isso é somente um modo de atacar o problema por um viés assaz epistemológico-normativo (e talvez dogmático), sem considerar o importante papel da religião na sociedade.

De fato, o termo "criacionismo" ou "ciência da criação" tem sido repetidas vezes usado pelos seus entusiastas de maneira bastante ambígua, gerando uma confusão entre o seu sentido religioso e o seu pretenso sentido científico; prejudicando, inclusive, o próprio debate que aparentemente almejam criar, pois, quando desejam transformar o criacionismo numa ciência, qualquer tentativa de submetê-lo a testes rigorosos será potencialmente ofensivo para aqueles que acreditam - por fé religiosa - conter nele alguma verdade.

Por essa razão, proporei aqui uma distinção entre criacionistas confessionais, isto é, aqueles que acreditam no criacionismo religioso estritamente, sem qualquer pretensão de torná-lo uma ciência; e criacionistas teoréticos, isto é, aqueles que veem o criacionismo não somente como uma doutrina religiosa, mas como uma explicação científica sobre a origem da vida. O segundo grupo também é conhecido como "criacionistas científicos", mas essa definição não me parece ser muito boa, já que seus entusiastas frequentemente ignoram os resultados da ciência favoráveis à teoria da evolução. Se bem que, como argumentarei abaixo, exista uma estranha ideologia cientificista neles, tendo em vista que veem na explicação científica a autoridade mais adequada com relação a todas as outras formas de compreensão humana da realidade. Neste sentido, não é difícil concordar que a tentativa de desenvolver uma "ciência da criação" tem, como pano de fundo, um propósito mais secular do que religioso.

Consequentemente, os criacionistas teoréticos não estão propriamente reivindicando um espaço adequado para religião dentro de uma sociedade marcadamente secular; mas desejam, muito além disso, ocupar espaços educacionais a fim de apresentarem o criacionismo como uma teoria cientificamente qualificada em alternativa ao evolucionismo - ainda que ignorando boa parte do que dizem atualmente os cientistas e os filósofos da ciência.

A "ciência da criação" não é resultado do acúmulo do que os epistemólogos chamam de progresso científico, tampouco é parte de um programa de pesquisa da ciência, mas é meramente uma conjectura isolada sem qualquer eco ou expressão científica. Todavia, ressalto que o criacionismo em si mesmo nunca precisou ser uma ciência para quem acredita nele unicamente através de sua fé religiosa. Além disso, tentar submeter o credo religioso ao credo científico é uma tarefa fadada ao fracasso. A ciência não é dona da verdade. Aliás, os seres humanos lidam com muitas verdades que independem do conhecimento científico, como, por exemplo, "que todos os homens são mortais" ou "que o sol nascerá amanhã": ambas nunca precisaram ser submetidas a testes rigorosos para serem aceitas. Da mesma maneira, boa parte dos ensinamentos das religiões têm um direcionamento ético-político que jamais requereu qualquer aval científico para ser seguido por diferentes povos.

É evidente que qualquer pessoa deve ter seus direitos assegurados e respeitados dentro das sociedades democráticas para professar o credo que quiser e, inclusive, negar o próprio credo da ciência. Se bem que, como já notei acima, no caso do criacionismo teorético, não existe uma forte oposição contra a ciência. Pelo contrário, seu propósito é precisamente ser um cientificismo antiestablishment, uma vez que seus entusiastas veem a ciência de forma assaz idealizada e, por essa razão, buscam sustentar suas crenças apelando a ela, ainda que de forma bastante imprópria. É como se o criacionismo confessional não fosse suficiente para eles, já que enxergam principalmente na ciência - não necessariamente na comunidade científica - a autoridade ideal para legitimar sua fé religiosa.

O que os criacionistas teoréticos realmente rejeitam no conhecimento científico - o bem estabelecido! - são alguns de seus resultados que aparentemente contradizem seus dogmas bíblicos. Muitos deles leem a Bíblia de maneira assaz literal e, com isso, abraçam por completo afirmações que são, no mínimo, problemáticas (como a tese de que a Terra teria sido criada em 6 dias de 24 horas ou que teria por volta de 6 mil anos). Consequentemente, não seria inapropriado dizer que o criacionismo teorético  é, de forma bastante paradoxal, um cientificismo e um anticientificismo: apoiado, de um lado, por uma pretensa visão científica da realidade e, de outro, numa interpretação literalista da Bíblia que nega os resultados da ciência. Trata-se, portanto, de uma fusão de duas ideologias aparentemente incompatíveis uma com a outra, mas que encontram seu ponto de intersecção nesta pretensa ciência. É como se seus entusiastas dissessem: se a verdade é uma só, então, ciência e religião são basicamente a mesma coisa!

De fato, uma das razões que tornam o pretenso debate entre criacionismo e evolucionismo assaz aborrecido é que não há qualquer necessidade de um crente de seguir esse criacionismo teorético, uma vez que já pode tranquilamente se satisfazer com a narrativa bíblica para professar sua fé religiosa, ainda que não de uma forma literal. Portanto, não há qualquer razão para equiparar criacionismo e evolucionismo, tendo em vista que isso seria quase a mesma coisa que pôr em pé de igualdade religião e ciência, sem levar em consideração que ambos os saberes não estão amparados pelos mesmos pressupostos e objetivos. Pelo contrário, cada um deles desempenha um papel singular na vida humana que não necessariamente se opõe, de sorte que essas aparentes "contradições" entre fé e ciência são meramente acidentais, mas não necessariamente substanciais.

Uma pessoa pode ser religiosa e, no entanto, não negar os resultados da ciência. Pode, inclusive, sustentar que se trate de dois tipos de saberes que se complementam de forma mútua, cada qual desempenhando o seu devido papel na vida humana. Do mesmo modo, um cientista pode ser alguém religioso e reconheça que os ganhos cognitivos da sua ciência são de um escopo diferente da religião. Um dos argumentos fortes para se aceitar tal posição é que as leis da natureza são substancialmente diferentes dos milagres: dada a sua dimensão transcendente, os milagres são aceitos pela fé, enquanto as leis da natureza são estabelecidas por meio da pesquisa científica. É necessário considerar ainda que a distinção entre ciência e religião não torna o saber religioso inferior ao saber científico e vice-versa.

Isso elimina qualquer pretensão de tomar a ciência como fonte de ateísmo e a religião como fonte de negacionismo científico. Ao contrário, pelas razões que já expus acima, no fim das contas, cientificismo ateísta e religiosidade anticiência são ideologias opostas que, no entanto, encontram guarida entre os recentes entusiastas do criacionismo.

 

* Doutor em filosofia pela UFMG e autor do blog "Interfaces Filosóficas".

OUTROS LINKS DE APOIO:
[1]  https://criticanarede.com/rel_criacionismo.html
[2] https://plato.stanford.edu/entries/creationism/
[3] http://anpof.org/portal/index.php/en/comunidade/coluna-anpof/2533-a-pos-verdade-da-fe-e-da-razao

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