DE COMO AINDA NÃO FAZEMOS FILOSOFIA MAS BEM PODEMOS COMEÇAR A FAZER

José Crisóstomo de Souza

Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Contemporânea da UFBA

01/12/2016 • Coluna ANPOF

Como então vamos finalmente fazer filosofia no Brasil? Se depender do incentivo da Anpof, vamos sim. É o que pode ser entendido nas linhas gerais do seu projeto para uma coluna de debates entre filosofia e contemporaneidade. Pois, a propósito dessa mobilizadora e já tão bem sucedida proposta, a Anpof apresenta, para seu enquadramento geral, compromissos e metas que vão muito além dela. Um enquadramento que destaca, como propósito central do projeto, um inédito amadurecimento da comunidade filosófica brasileira e de suas formas de fazer filosofia. Trata-se de fato de uma instigante e ambiciosa “provocação”. Senão vejamos – e para vê-lo me seja dado recapitular rapidamente a proposta.

Um Projeto para Nossa Maioridade Filosófica

A Anpof nos propõe nada menos do que um “debate entre a filosofia e a experiência contemporânea” em sua “complexidade de problemas” – coisa então para filósofo de verdade, não é mesmo? Para o que sugere “ampliar sua [da filosofia] articulação com esse contexto”, articulação e contexto esses que logo adiante vemos melhor caracterizados. Pois não se trata apenas de considerar nosso tempo e lugar, o que já seria muita coisa, mas de “ampliar a interlocução da filosofia com a sociedade, a ciência, a cultura e a arte.” Trata-se assim de um envolvimento que não implica apenas a filosofia política, a teoria social ou a crítica da cultura, mas a filosofia da ciência, a epistemologia, a filosofia da arte, a estética, certamente a filosofia moral, a ética, a ontologia, a filosofia da técnica, até mesmo a lógica. Uma verdadeira virada hegelianizante, enfim, do nosso filosofar inteiro, para o tempo e o contexto. E isso, note-se bem, como via para o necessário “amadurecimento de nossa ampla comunidade filosófica”, amadurecimento que não poderia sequer ser “concebido [como] dissociado” daquela articulação e interlocução.

Convenhamos que não se trata de pouca coisa, mas de uma autêntica conversão da nossa comunidade acadêmica a uma nova posição, que embora para nós seja ainda inédita, ao mesmo tempo soa de pronto convincente e desejável. Pois teria a ver com “um papel central atribuído à Anpof por aquela comunidade, ao longo das mais de três décadas de sua história”. Ou seja, atribuído por nós mesmos a ela. E que papel então seria esse? O da promoção “de um debate filosófico, qualificado do ponto de vista de sua fundamentação, mas atual e integrado ao contexto singular de nossa experiência”. Fundamentação que creio deva significar algo como: sem dispensar o laborioso cultivo próprio da filosofia, que nos prepara para o específico de nossa contribuição. E o referido debate filosófico, amadurecedor, como tarefa central para toda a nossa comunidade filosófica de ensino e produção, e de cada um de nós. Sem debate de questões filosóficas não há filosofia.

Não bastasse o tamanho do desafio implicado pelo recapitulado até aqui, o projeto anpofiano, de um desenvolvimento debatedor e contemporâneo para nossa filosofia, não visaria apenas o amadurecimento nosso enquanto comunidade acadêmica. Mas também o amadurecimento da própria sociedade da qual fazemos parte. Pois nossa “interlocução com a sociedade” teria o compromisso de contribuir com o debate dos temas do nosso tempo como nela mesmo é travado. Onde, lamentavelmente, e isso então nos concerne, “o acesso a novos meios de comunicação não se faz acompanhado do amadurecimento e qualificação do debate”. Ao contrário, “estes meios têm muitas vezes estimulado a circulação ou consolidação de posições sem reflexão sustentada e plural”. Ora, o que mais poderia querer uma comunidade nacional de ensino e produção de filosofia do que contribuir para fazer avançar – por sua competência efetivamente filosófica - o nível do debate da sociedade inteira? Pondo nele a “marca mais fundamental” da “amplitude e pluralidade na abordagem de temas contemporâneos”? Não seria esse nosso mais relevante engajamento, crítico e transformador, o mais radical e o mais especificamente nosso?

Uma maneira de ir direto ao ponto com relação ao alcance envolvido por esse projeto inteiro é perguntarmo-nos: Mas quando foi que nos preparamos para tanto? Ou melhor ainda: O que a partir de agora nos prepararia para tamanho desafio? E, isso, mesmo para o caso de o projeto da coluna ser entendido o mais estreitamente, embora sempre como mais que um simples convite para desenvolver alguma consideração politizada, que qualquer cidadão escolarizado poderia fazer, sobre o noticiário do dia, apenas valorizado por uma ou outra citação do filósofo do coração. Enfim, quando foi mesmo que em nossos cursos, orientações, teses, produções ou encontros voltamo-nos, com jeito de filósofo, para “a experiência contemporânea com sua complexidade de problemas”, enquanto “contexto singular de nossa experiência”, e para “temas políticos, econômicos, culturais e científicos do nosso tempo”? Ou, ainda, quando em nosso fazer filosofia jamais empreendemos uma “interlocução com a sociedade, a ciência, a cultura e a arte”? Não é disso que se trata?

Por isso que entendo que o enquadramento mais geral do projeto da Anpof, sua provocação, tem alcance e ambição suficientes, até extraordinários, para que não passe sem consideração mais detida, como proposta que é de um passo estratégico na direção da maioridade da filosofia no Brasil. Deixá-lo passar em branco poderia significar que se trata de entendimento inteiramente compartilhado, assumido e praticado, pelo menos buscado, o que me parece estar longe de ser o caso. Ou significar que se o toma como algo meramente retórico, para não ser levado a sério, para não mudar nada. Ou ainda, finalmente, pode significar que pôr em questão o que é que andamos fazendo como filosofia pode ser algo incômodo, até embaraçoso, que se trataria de evitar, ainda que sejamos uma categoria reflexiva por vocação e obrigação. Resta então perguntar de frente: Fazemos mesmo filosofia? Ou: O que é que fazemos como filosofia? Pois então vejamos isso, ainda que, aqui, por falta de espaço, de maneira abreviada e tosca, possivelmente com alguma dose de simplificação ou exagero, além de provocação. Apenas o suficiente para dar contorno e tamanho ao desafio com que o projeto de maioridade da Anpof nos confronta.

Sapere Aude: Adeus Magister Dixit e Filosofia de Comentários?

Fazemos mesmo filosofia? No mais das vezes, não, não fazemos. Ou pelo menos ainda não de modos com que a proposta da Anpof possa prontamente contar. Na minha percepção, é ainda a mesma e velha história: fazemos dominantemente filosofia apenas como leitura passiva de Autores – de filósofos históricos, eurocêntricos, canônicos, sempiternos, ou tomados como tais. Por um modo de leitura apenas interno, exegético, por isso julgado muito técnico, científico, disciplinar. No fim de contas, fazemos apenas história da filosofia, por via de um tipo de exercício escolar, de leitura, supostamente preparatório à filosofia, na verdade um entre outros tantos recursos de formação tão ou mais necessários. Por uma via que acaba sendo apenas um fazer filosofia centrado no Autor como maître-à-penser, cada um com o seu, como uma espécie de orixá de cabeça. Esse ainda seria o verdadeiro paradigma de trabalho da nossa comunidade, passado para nós pelos historiadores franceses da filosofia Goldschmidt e Guéroult. De certa forma um acidente de percurso, mas bem de encaixe com os hábitos atavicamente escolásticos de nossa formação ibero-católica, na contramão da modernidade, sem sapere aude, sem autonomia, uma autêntica jabuticaba. Algo que por isso mesmo perdura, como uma espécie de encosto, como sendo nosso modo óbvio e inquestionado de fazer filosofia, modo que está presente mesmo quando não é propriamente explicitado nem tematizado. Um exercício justificado como etapa preparatória para outra coisa, que entretanto nunca chega nem poderia: fazer filosofia – nossos filósofos morrendo virgens de pensamento, sem ensaiar coisa própria alguma. Uma prática marcada por um particular desinteresse pelo tempo, pelo contexto e suas demandas, e por qualquer debate entre pares. Pelo país. Além do desinteresse por tudo o que antes já se escrevera em português. Completamente desligada do foco em temas e problemas – salvo os de exegese e interpretação.

Bem aquilo que Kant aponta como não fazer filosofia: conhecer um sistema filosófico inteiro, até de cor, e entretanto absolutamente não filosofar e não saber filosofia, o que envolve inevitavelmente servir-se ativamente do próprio entendimento. Nos encontros internacionais de que tenho participado, mesmo aqui na América Latina, dá para observar que sob esse aspecto somos em geral os mais tímidos, mais do que colegas, desculpem, da Guiana Francesa ou do Paraguai. Bloqueados para a apropriação e uso efetivos dos autores, quanto mais para a formulação de qualquer juízo filosófico próprio. Nesse quadro, a filosofia analítica entre nós é um capítulo à parte, representa uma aragem em parte benfazeja, pois em princípio está mais inclinada a não prostrar-se piedosamente diante de Autores, mas a discutir com eles, bem como a desenvolver o debate entre pares. Ainda que às vezes se apresente como outra versão de tecnicismo academicista, comparável ao goldschmidtismo nosso, ou apenas como penduricalho extraterritorial, pautado pela discussão de outra comunidade filosófica nacional, a analítica norte-americana, envolta em seus próprios dilemas de legitimação, tão desafiadores quanto os nossos.

Para complementar esse quadro, passo em revista, de memória, ao modo de um teaser, algumas opiniões e gestos de colegas, que de uma maneira ou de outra dão reconhecimento ao problema. Giannotti, um de nossos pais fundadores, já disse que esse paradigma, agora esgotado e engessador, finalmente faliu. E propôs, se bem me lembro, que nossas teses e dissertações tomassem agora caráter de ensaios. Ao tempo em que admitiu que com aquela formação sequer reconhecemos um filósofo quando vemos um na nossa frente: Quando Vilém Flusser viveu por aqui, por exemplo, achamos que o que ele fazia – ao contrário do que nós fazemos com nossos insossos comentários – não era filosofia. Com o que Vilém acabou acolhido foi mesmo pelo pessoal “de direita” de Miguel Reale, de quem cremos nos apartar por uma notável superioridade científica – e política. Por seu lado, Oswaldo Porchat, com sua proverbial bonomia, concluiu com toda franqueza que seguir aquele paradigma não era absolutamente fazer filosofia, mas história da filosofia, e finalmente ensaiou desenvolver um interessante ponto de vista filosófico próprio.

Tércio Ferraz nos conta como retrucaram seus colegas alemães quando lhes disse que não queria mais apenas interpretar filósofos mas enfrentar questões filosóficas (como se isso fosse supremo sacrilégio): E daí? qual é o problema? Paulo Arantes chamou o Departamento de Filosofia da USP, sede e célula mater da universalização do projeto G&G, de “Departamento Francês de Ultramar”. Ricardo Terra sugere que nos interessemos pela recepção posterior do nosso filósofo canônico, de maneira a chegar mais perto do nosso tempo, talvez mesmo ao presente. Renato Janine, que sempre deplora o caráter desinteressante de boa parte nossas teses, levanta a questão “Pode o Brasil renunciar a filosofar?” Para cobrar que cheguemos a filosofar, como fazem australianos, franceses ou americanos. Ricardo Musse, provocativamente, entendeu que alguns dos mais excelentes representantes nacionais da filosofia, quando entrevistados como filósofos, sabem dizer o mesmo que qualquer aluno razoável de graduação. E finalmente Ernst Tugendhat, que trabalhou bastante nas nossas universidades, sugere, para que escapemos da clausura da história da filosofia, que na graduação os alunos comecem por conhecer problemas da filosofia de nossos dias, para terem como em seguida tomar significativamente a filosofia anterior, por sua eventual contribuição para os mesmos.

Ressalvadas as exceções que confirmam a regra, não me parece tenhamos avançado com relação a nada disso, mas que temos agora boa oportunidade e melhor potencial para fazê-lo através da virada contemporaneizante, filosófica, a que somos convocados pela Anpof. Pois, ao fim e ao cabo, fazer filosofia será sempre fazer filosofia contemporânea, não importa quão, como ou se apoiados na contribuição de autores que nos antecederam, eventualmente discutindo com eles, tomando-os a contrapelo, inspirando-nos nele, fazendo algum uso deles. Com bom desenvolvimento argumentativo, boa articulação conceitual, e debate aberto com os pares. Com a disposição irrenunciável de enfrentar temas e problemas relevantes, em última análise com entendimento próprio, e de contribuir para que outros também nisso se exercitem, sempre admitida a todos a capacidade para em alguma medida fazê-lo. Coragem, então! Façamos filosofia!

01 de Dezembro de 2016.

DO MESMO AUTOR

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José Crisóstomo de Souza

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