DEMOCRACIA E RECONCILIAÇÃO: UMA POSSIBILIDADE NO MÉDIO PRAZO

Daniel Peres

UFBA

07/10/2016 • Coluna ANPOF

Meus amigos e meus inimigos, salvemos a política, salvemos a democracia. Vivemos uma crise cuja natureza e tamanho são difíceis de avaliar. Trata-se de uma crise política que levou a uma crise econômica, de uma crise econômica que levou a uma crise política, de uma degradação cada vez maior nas relações entre público e privado, trata-se do resultado da consciência da urgência e da ação de passar a limpo tais relações, ou da ação de uma consciência muito seletiva, que em verdade pretende mudar uma que outra peça, para tudo continuar como antes. Tudo isso e muito mais são leituras possíveis do momento que vivemos.

O que eu pretendo encaminhar aqui passa ao largo de todas essas explicações possíveis - pressupõe claro um diagnóstico, mas não se limita a isso, e certamente não tem no diagnóstico o seu ponto central. Passa, porém, pela compreensão de que instituições demoram um longo período de formação e maturação, e que não são, ainda que muitos pensem o contrário, o resultado de um golpe de mágica. Passa, igualmente, pelo reconhecimento de que nossas instituições, ainda que muito imperfeitas, devem ser preservadas. Com isso em mente, afasto de meu horizonte duas maneiras de ver os acontecimentos: aquela que considera que vivemos um momento de depuração radical, de purificação e regeneração do sistema político; aquela que não vê a hora de chegarmos logo ao limiar do abismo. Ambas as compreensões, cada uma a seu modo, nutrem um desprezo profundo pela democracia e pela política.


Fiat iustitia, pereat mundus. Que se faça justiça e que o mundo pereça, que o mundo tal qual conhecemos, dividido entre o bem e o mal, entre o honesto e corrupto, pereça. Faça justiça, e o mundo que irá daí resultar será um mundo sem corrupção. Faça justiça e mulheres e homens são transformados em anjos. Convenhamos: a corrupção não se elimina, se combate. E se combate com as instituições, não as destruindo, o Ministério Público inclusive, que cada vez mais vê sua atuação, e portanto sua autoridade, questionada na opinião pública como partidária. Assim, diante das evidências que temos, a interpretação que me parece a mais correta do dito latino é “faça-se justiça e que as instituições pereçam; faça-se justiça e que pereça o estado de direito”.

Não há dúvida de que a corrupção põe um sério desafio e é uma ameaça constante à democracia. Mas também não há dúvida de que uma dessas ameaças está em se imaginar que seria possível, de uma vez por todas, erradicar a corrupção. Imaginar que a salvação da coisa pública virá da ação de alguns virtuosos não é apenas um erro conceitual, é também ignorância da história. Com isso, não se pretende negar, de forma alguma, a importância do combate a corrupção, em geral, e da Lava-Jato, em particular. Mas também não se pode desconhecer que excessos estão sendo cometidos, que limites estão sendo ultrapassados, que o ultrapassamento de tais limites são uma forma de corrupção, e que tal corrupção é ainda mais grave: o populismo judiciário. Afinal, não parece possível, a um só tempo, defender a democracia e não se chocar em tal afirmação de um desembargador, em resposta a representação contra importante ator da “Lava-Jato”:

“é sabido que os processos e investigações criminais decorrentes da chamada "Operação Lava-Jato", sob a direção do magistrado representado [o juiz Sérgio Moro], constituem caso inédito (único, excepcional) no direito brasileiro. Em tais condições, neles haverá? situações inéditas, que escaparão ao regramento genérico, destinado aos casos comuns (...) a ameaça permanente à continuidade das investigações da operação 'lava jato', inclusive mediante sugestões de alterações na legislação, constitui, sem dúvida, uma situação inédita, a merecer um tratamento excepcional”. (1)

A fratura em que nos encontramos é muito profunda e as instituições, todas elas, estão por um fio. Desde 2013 essa fratura vem se acentuando e apresentando o contorno de uma crise de representação. O impeachment apenas aprofunda essa crise, pois o vice presidente assume com a legitimidade amplamente contestada. Um conjunto de reformas é proposto, em um claro ataque a direitos sociais e a mecanismos de compensação. Mais uma vez a conta da crise vai ser imposta ao trabalhador. A reação, podem esperar, irá se fazer sentir. E a crise se aprofundará. E uma solução se retardará. Não resolveremos nossa crise econômica sem resolvermos nossa crise política. E não é do judiciário que virá uma solução. Uma crise política só se resolve de um modo: politicamente.

A questão, porém, é que o sistema político está parado, o poder judiciário - de modo proposital ou não, pouco importa aqui- travou o sistema político. Creio que a sociedade civil deve lutar por tal destravamento, enfrentar o populismo judiciário. Isso não significa que ela se apresente como poder instituinte, muito pelo contrário. Ela deve lutar por um instrumento que faça com que o sistema político volte a funcionar. E creio que tal instrumento passa por um processo de reconciliação do sistema com a sociedade, mas também de reconciliação entre as partes do próprio sistema.


A reconciliação entre as diferentes partes do sistema é condição necessária, ainda que não suficiente, da reconciliação do sistema político com a sociedade. Talvez uma das heranças da ditadura que ainda não foi supera está na relação entre oposição e governo. A oposição, antes mas também agora, sobretudo agora, diante da derrota eleitoral, tratava e trata de criminalizar as ações do governo, como se a polícia fosse um recurso legítimo à derrota política. Não é, e aqui estamos nós, em uma situação na qual, para a população, política e crime formam uma unidade.

O que seria tal processo de reconciliação é algo que não tenho competência nem tempo para detalhar aqui. Até porque deve ser um processo que envolva muitos atores, políticos e não políticos. Mas algumas coisas são certas: não pode ser um processo que queira simplesmente apagar o que foi e é feito, que signifique terminar com as apurações. Não é no nosso processo de anistia que penso, que simplesmente impediu que se investigassem os crimes da ditadura. Penso no processo de unificação nacional por que passou a África do Sul quando saiu do regime de Apartheid, ou seja, em algo semelhante à Comissão

de Verdade e Reconciliação da África do Sul,2 que se estabeleceu em grande medida como um espaço discursivo que assentou as bases para uma democracia nascente. No caso da África do Sul (2), os atos de violência e de violação dos direitos humanos que foram considerados para receberem anistia foram aqueles, e apenas aqueles, vinculados a objetivos políticos Se trata, portanto, de fazer com que os políticos falem, que os empresários falem, que os partidos falem. Não se trata de negar a culpa, mas de coloca-la em um outro registro, isto é, se trata de passar do registro criminal para o registro político. Não se trata, portanto, de parar as investigações, mas de realmente aprofundá-las, radicalizá-las, de retirar o filtro que parte do judiciário lhe parece querer impor, de não mais permitir que essa parte decida o que investigar e o que não investigar. Se trata, em última instância, de compreender, de saber e de criar mecanismos para tornar a política menos susceptível à corrupção.

Mas é preciso encontrar um sujeito capaz de dar corpo à ideia aqui proposta. O congresso deve estar ciente de que qualquer “anistia” aprovada na calada da noite não será tolerada – afinal, essa é uma pauta que deve vir da sociedade, cujo tecido, porém, está completamente esgarçado. O governo também não parece ter a estatura moral e a legitimidade necessária para tocar esse processo. Congresso e Governo, afinal, precisam entender que sua duração vai até o momento em que as delações chegarem de modo incontornável ao PSDB e ao PMDB. Se um tal processo for enfrentado, e se vier a dar os bons resultados que podem daí surgir, aí sim é possível imaginarmos um outro futuro que não o abismo.

A compreensão que dele resultar será o primeiro passo para a correção de nosso sistema político, para a refundação da relação representante e representado. Assim como o “Ato 34 de Promoção da Unidade e Reconciliação Sul Africano”, a nossa Comissão de Reconciliação poderia iniciar definindo a sua finalidade os seguintes termos: “promover, da forma a mais completa possível, a investigação e o diagnóstico da natureza, causas e extensão” da corrupção no sistema político brasileiro.

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(1) Trata-se do voto do relator, o Desembargador Federal Romulo Pizzolatti, que não dá provimento a representação contra o juiz Sérgio Moro. O voto pode ser encontrado em http://s.conjur.com.br/dl/lava-jato-nao-seguir-regras-casos.pdf. O voto foi vitorioso por 13 a 1, o que bem a ideia de como pensa judiciário. Acessado em 24 de setembro de 2016.

(2) Sobre isso ver, entre outros, Cornell, D. e Muvanga, N. Ubuntu and the Law – Africans ideal and posapartheid jurisprudence, Nova York, Fordham University, 2012, em especial o capítulo “Amnesty, Reconciliation, and uBuntu”, página 103 e seguintes.

07 de Outubro de 2016.