Desafiando a divisão internacional do trabalho intelectual: a revista moçambicana de filosofia O Curandeiro está aberta a contribuições brasileiras

Murilo Seabra

Doutor em Filosofia (La Trobe University)

09/12/2021 • Coluna ANPOF

Em seu recente livro Filosofia Jabuticaba: Colonialidade e Pensamento Autoritário no Brasil, João de Fernandes Teixeira não apenas faz um acerto de contas com a comunidade acadêmica brasileira de filosofia; ele também coloca o dedo – repetida e insistentemente – na sua maior ferida, a saber, o fato de que ela suspeita fortemente da sua própria inteligência: ela se julga capaz de absorver conhecimento, mas não de produzi-lo. Em um dos momentos mais ácidos do livro, e também mais certeiros, Teixeira lamenta a deplorável psicologia do professor universitário que, apesar de toda sua vaidade, não passa de “um marqueteiro que berra a plenos pulmões as ideias dos outros”. Os departamentos de filosofia brasileiros formam todos anos exércitos de comentadores sem voz própria; cantores que não compõem, só interpretam; apaixonados por cinema que sabem recitar todos ensinamentos de Tarkovsky e Bergman, mas tremem de medo diante de uma câmara. “Por que os brasileiros não gostam de ler os brasileiros?”, pergunta Teixeira. Porque eles não escrevem, só reescrevem. Porque eles não pensam, só repensam. Porque eles não filosofam, só comentam.[i]

E para piorar as coisas, não somos os únicos sem nenhuma vontade de nos ler; não somos os únicos a achar que não temos nada a dizer. Como notou orgulhosamente o professor Vladmir Safatle, a comunidade acadêmica brasileira de filosofia é hoje uma das maiores comunidades do planeta. Mas ninguém nos lê. Nem nós mesmos. Apesar de citarmos religiosamente os franceses, alemães, ingleses e americanos, eles não retribuem a gentileza. Eles não nos citam. Eles não nos leem. A admiração não é recíproca. Mas se não citarmos o que eles escrevem sobre o mundo, a vida, a política, a sociedade ou a consciência, nossas bibliografias serão julgadas incompletas – e nossos artigos serão rejeitados pelos pareceristas e editores. O inverso não é verdadeiro. Se eles não citarem o que nós escrevemos sobre o mundo, a vida, a política, a sociedade ou a consciência, suas bibliografias não serão julgadas incompletas – e seus artigos não serão rejeitados pelos pareceristas e editores. Aliás, os nomes brasileiros podem até macular – sim, degradar, deslegitimar, desfigurar – as bibliografias onde aparecem. Para seu artigo ser publicado, é imprescindível você citar franceses, alemães, ingleses e americanos. É recomendável não citar brasileiros. A regra vale tanto para revistas francesas, alemães, inglesas e americanas quanto para revistas brasileiras.

Por que então insistimos em escrever em inglês? Por que insistimos em colocar não apenas resumos e palavras-chave em nossos artigos, mas também abstracts e keywords?E por que não colocamos neles resúmenes e palabras clave, apesar de estarmos cercados por países hispanofalantes? Por quê? Por que achamos engraçado quando os lojistas inventam marcas em inglês, mas quando colocamos abstracts e keywords em nossos artigos achamos que estamos sendo profissionais? Por quê? Sem dúvida, existem exceções à regra. Há quem nade contra a correnteza. Há quem cite brasileiros. Há quem não se incomode, ao avaliar um artigo, em ver na bibliografia brasileiros. Há quem desafie a divisão internacional do trabalho intelectual. Há quem ache que a periferia não precisa se limitar a escrever literatura secundária. Há quem ache que ela também tem o direito de escrever literatura primária. Mas para seu artigo não ser rejeitado por desafiar a divisão internacional do trabalho intelectual, ele precisa ter a sorte de cair nas mãos de editores e pareceristas que também estão nadando contra a correnteza. Uma coisa são os esforços individuais, pontuais e isolados. Outra coisa é o mainstream, a estrutura dominante. Eles coexistem, mas são antagônicos. E a tendência geral é muito mais pervasiva, muito mais imponente, muito mais decisiva do que os pontos fora da curva.

Não precisamos dar as costas para a produção intelectual dos países hegemônicos. Não precisamos retribuir a descortesia. Os seus críticos têm coisas interessantes a dizer. Mas precisamos, sim, fortalecer o diálogo com países que, como o Brasil, ocupam uma posição marginal na economia do saber. A Europa não é sinônimo de mundo. Precisamos construir pontes com a África, a Ásia, a Oceania e a América Latina. É aqui que entra a revista moçambicana de filosofia O Curandeiro. O seu próprio nome – que invoca o tradicional em oposição ao moderno – indica que ela está nadando contra a correnteza. A revista O Curandeiro não romantiza o atual o domínio angloamericano da academia, cujas perversividades, em grande medida realizadas às escondidas (no processo de revisão por pares, por exemplo), a professora Diana Jeater trouxe à tona em um artigo onde ela relata diferentes formas de discriminação contra acadêmicos zimbabuanos em particular e africanos em geral.

O melhor de tudo é que as portas da revista O Curandeiro estão abertas para contribuições brasileiras. E para parcerias de todo tipo, porque as revistas também precisam de revisores, pareceristas e diagramadores. Infelizmente, os nossos pensamentos e sentimentos estão todos voltados para as potências capitalistas. Além de acharmos que existem gêneros superiores e inferiores e raças superiores e inferiores, também achamos que existem nacionalidades superiores e inferiores. Quem abandonaria a chance de fazer doutorado na França ou na Alemanha para fazê-lo no Brasil? Quem abandonaria a chance de publicar seu artigo numa revista inglesa ou americana para publicá-lo numa revista brasileira? Discriminamos a nós mesmos. Discriminamos nossas universidades. Discriminamos nossas revistas. Pois discriminamos a periferia. E discriminamos quem se pronuncia contra a discriminação. Talvez esteja na hora de mudarmos de atitude. Talvez esteja na hora de superarmos a obra de engenharia subjetiva que faz com que nos sintamos inferiores. Talvez esteja na hora de rejeitarmos a divisão internacional do trabalho intelectual. Talvez esteja na hora de pararmos de olhar para cima e começarmos a olhar para os lados.

Mas o que escrever para uma revista como O Curandeiro? Mais um comentário introdutório a Heidegger? Mais uma interpretação bem-comportada de Wittgenstein? Mais uma tentativa de “filosofar com” os autores das potências centrais, que, diga-se de passagem, não mostram muito interesse em filosofar conosco? Mais um dever de casa pomposo, cheio de palavras difíceis? Mais um trabalho descartável que não faz mais do que engordar o currículo? Mais uma demonstração de erudição? Mais um exercício de pose? Seria um desperdício, não? Só somos mesmo marqueteiros sem voz própria? Não podemos mais do que repetir os ensinamentos de Tarkovsky e Bergman? Pois costuramos nossos lábios com tanta obstinação que agora não temos sequer o que falar? De modo que só nos resta elogiar a grandiosidade do nosso exército de comentadores? E sentir orgulho por sermos guardiães fiéis da cultura ocidental, ignorando que, do ponto de vista dos seus verdadeiros guardiães, não somos sequer ocidentais?

Já perdemos chances demais de escapar à tutela europeia. Temos aqui a oportunidade de construir um diálogo sem intermediários. Temos aqui a oportunidade de trocarmos experiências e reflexões sobre o mundo, a vida, a política, a sociedade e a consciência ao invés de simplesmente reescrevermos os pensamentos de Heidegger ou Wittgenstein. Temos aqui a oportunidade de fazer um balanço sóbrio da civilização que está destruindo o planeta e também nos destruindo. Temos aqui a oportunidade de filosofar ao invés de comentar. Podemos combater juntos o epistemicídio. E desenvolver juntos o programa de pesquisa de Odera Oruka. E talvez até ressignificar a etnofilosofia. Podemos pensar juntos em alternativas à civilização industrial. Podemos gestar novas utopias. Temos aqui a oportunidade de elaborar – gradual e naturalmente – nossa própria agenda teórica e de forjar nossos próprios instrumentos de análise. Temos inclusive a oportunidade de recuperar a diversidade de estilos de escrita da filosofia, como os diálogos, as cartas, os ensaios e os aforismos, desvencilhando-nos da camisa-de-força representada pelo rígido modelo do artigo. Temos aqui a oportunidade de pensar e escrever de maneira autêntica. Já sabemos que a filosofia nasceu na África. Que tal contribuirmos para mantê-la viva ao invés de enterrá-la?


[i]       TEIXEIRA, João. Filosofia Jabuticaba: Colonialidade e Pensamento Autoritário no Brasil. São Paulo: FiloCzar, 2021, p.49, p.56.

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