Desviando o debate: por que retirar a obrigatoriedade da filosofia?

Érico Andrade

Professor do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco

27/10/2016 • Coluna ANPOF

O governo Temer impõe uma estranha agenda para a filosofia. Discutir a obrigatoriedade do ensino de filosofia, consolidada na LDB, depois de um longo e intenso debate, com pessoas fortemente engajadas com as questões do ensino, não me parece um processo de revisão de certas posições, próprio da democracia, como diria John Stuart Mill. Trata-se de aceitar a exigência de que numa época delicada da política nacional precisamos, agora, no exato momento em que garantias constitucionais estão ameaçadas, discutir o que até então era inconteste, a saber, o ensino de filosofia. O agora, entendido não apenas como um advérbio de tempo, mas como a marca de um momento em que projetos como a escola sem partido avançam e conseguem, com seus representantes legais na câmara, notadamente o relator da PEC do ensino médio; Pedro Chaves (PSC-MS) do mesmo partido de Bolsonaro, relatarem reformas, como a do ensino médio, cujo debate de anos parece ter sido simplesmente reduzido a pó. Difícil aceitar que passados anos de um ótimo debate sobre o ensino de humanas e não apenas de filosofia, conduzido mais recentemente pela Base Nacional Curricular Comum e com ampla escuta nacional (mais de treze milhões de contribuições no portal da BNCC e com debates de norte ao sul do Brasil) possamos agora questionar e revisar, a mando do governo Temer, a até então inconteste obrigatoriedade da filosofia. Paradoxalmente, no entanto, foi necessário um governo, com legitimidade duvidosa e que dialoga com setores absolutamente conservadores da sociedade, para que a área de filosofia se desse conta da obrigatoriedade da filosofia e, mais ainda, sobre possíveis questões filosóficas sobre critério de obrigatoriedade.

 

 

A suposição, sim, a simples suposição, de que poderíamos, nós filósofos e filósofas, estar defendendo a obrigatoriedade por uma espécie de reserva de mercado ou corporativismo distancia-se da história e da tradição do ensino de filosofia rompidas, todos nós sabemos, na ditadura militar que tinha, tal como o governo Temer, um projeto político muito claro: o extermínio do pensamento crítico. Claro que podemos dizer que todas as disciplinas, quando bem ministradas, fomentam o pensamento crítico. Idealmente, sim. No entanto, curiosamente, as disciplinas que sistematicamente são ameaçadas quando governos com baixa ou nenhuma legitimidade assumem são invariavelmente as disciplinas como sociologia e filosofia. Assim, se o pensamento crítico não é um privilégio da filosofia, pelo menos, é ela que está na mira de projetos políticos amplamente questionáveis, pelos menos na história do Brasil recente, e que se posicionam em favor do pensamento único.

Desse modo, parece-me que aquilo que deveria causar estranheza para a área não é tanto a obrigatoriedade da filosofia. Deveríamos perguntar sobre os motivos pelos quais se quer acabar com a obrigatoriedade, sobretudo, depois do fim a fórcipes do governo do PT. Ou seja, o ensino brasileiro ganhará mais com a retirada da obrigatoriedade da filosofia? Dizer que não temos pessoas qualificadas para ministrar aulas (o que, aliás, pode se aplicar a várias áreas) e, por isso, se ganharia mais tirando a filosofia é tomar uma situação contingente, fruto de políticas feitas na forma do “puxadinho" e, portanto, sem planejamento, como uma justificativa para uma mudança estrutural no ensino brasileiro. Confunde-se os efeitos, a falta de professores, com a causa, a saber, a falta de concurso para a área de filosofia. Esse argumento não funciona e tenta estrangular a importância da filosofia pelo déficit proposital, promovido desde a ditadura militar, de professores nesta área. Ora, neste caso, o ônus da prova sobre a obrigatoriedade da filosofia deveria ser do governo que mimetiza vários posicionamentos da ditadura, como argumentei em outro artigo da coluna ANPOF. Em suma, se não está em jogo a falta de professores; por que retirar a obrigatoriedade da filosofia?

A perguntar que deveria ser estranha e constrangedora para a área é, portanto, insisto: por que então se deseja tirar a obrigatoriedade da filosofia? Se formos nos ater a discussões conceituais sobre no que consiste a obrigatoriedade, o mais provável é chegamos, ao que Wittgenstein entendida como a base de toda teoria: uma prática; onde a pá entorna, para seguir a metáfora do filósofo. Isto é, não encontraremos um argumento definitivo para justificar a filosofia, nem disciplina nenhuma como obrigatória. Na prática, contudo, o ensino de filosofia tem se apresentado mais adequado para mostrar as bases e pressupostos das argumentações feitas em diferentes áreas e, para isso, claro, não precisamos “gastar as pestanas” apenas lendo, interpretando e compreendo os textos clássicos da filosofia, mas tornando possível o espírito de questionamento, que a filosofia invariavelmente nos ensina e no que consiste à sua aplicação ao dia a dia dos jovens. Portanto, a filosofia nos ensina mais do que aprendemos interpretando razoavelmente os filósofos clássicos. Ela ensina a não aceitar nada como dado porque simplesmente está amparado numa autoridade; o que obviamente causa temor para os que fazem da autoridade argumento.

O desafio, portanto, não é eleger os filósofos clássicos e ir visitá-los para compreender exatamente o que disseram sobre certos temas, mas recuperar nesses filósofos o modo como eles fazem para decentralizar o óbvio e desnaturalizar o que até então foi visto como verdade. Não há, nem precisa haver argumentos irretocáveis que justifiquem a obrigatoriedade da filosofia, nem devemos esperar que esses argumentos, caso existissem, poderiam demover pessoas do atual governo do seu projeto político de extermínio do pensamento amplo, irrestrito e democrático. Os responsáveis do atual governo quando não acreditam totalmente na escola sem partido são afeitos à tese do ensino voltado para as questões estritamente técnicas; o que não dá, claro, espaço para a filosofia. Precisamos estar atentos, enquanto área, ao objetivo político do governo Temer de colonizar o ensino médio por meio da diminuição do seu potencial crítico que invariavelmente é acompanhada, na história do Brasil, pela retirada da filosofia da grade curricular.

 

27 de Outubro de 2016.

 

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