Dogma

Eduardo Novaes

Mestre em filosofia pela Universidade Federal da Bahia

14/05/2024 • Coluna ANPOF

A sucessiva aplicação da conjunção constante entre eventos semelhantes cria a ilusão mútua que alimentamos quando apurado o que é o caso e discriminada uma causa a um efeito. Desse enigma mal pôde se distanciar o empirismo. Pois por força de necessidade da natureza humana, unimos as mais distantes, mas também as mais próximas das diferenças. É assim que um evento sempre será possível se for necessário que de uma causa se suceda um efeito. Mas não vice-versa, pensávamos até hoje. Ou em ao menos 10 minutos de leitura. É que a forma de vida que acolhemos em nosso cotidiano é uma atividade, não um estado; movimenta-se em nossa imagem de mundo, que é uma atividade como uma confiança em ser estado, em um nível de flexão do conhecimento, encolhe e escolhe as mais larga decisões em uma heurística particular e, sem que possamos ver, mal vimos que tornamos o nosso conceito uma espécie de ideia próxima mais da criação livre que da explicitação de organização da nossa moldura de mente. Ora, o que proponho hoje é uma similaridade de ocasiões ligadas por semelhança de família através do ato de imaginar: um experimento de pensamento em que a narrativa nos propõe um mundo onde o efeito precede a causa.

Pois bem. Imagine que eu tenha uma mulher e que cotidianamente ela vai até a cama sempre 10 minutos antes das 10 horas e que, por uma estranha coincidência, ela sempre esteja lá 10 minutos depois. É que as nossas atribuições de tempo sempre assemelham as mais distantes comparações, talvez por causa de algum mecanismo subconsciente. Assim, de 10 em 10 minutos, dia após dia, temos que o fato de ela dormir toda vez que eu chegue à cama se deve ao caso de ela ter dormido 10 minutos antes do início do seu sono. Ou da sua insônia! Em outras palavras, ela dormiu para poder 10 minutos antes das 22h do dia seguinte ir até a cama, e assim sucessivamente. Nosso futuro é, então, parte de uma fricção e de uma ficção passada. A eventualidade de sempre se ausentar 11 minutos antes falha na conclusão do argumento que apresenta a relação interna entre a sonolência e a vigília. Pois o que foi o caso é parte da expressão do que será o caso, se tomarmos o tempo como um contínuo entre a inflexão da organização da experiência regular e a atribuições de acaso a fatores determinísticos ultradiscriminados na formação do quadro relativo de probabilidade ou estatística.

Saliento isso, em primeiro lugar, pois é nesse sentido que a nossa imagem de mundo precede ao exame das chamadas por David Hume como impressões reflexivas. Em segundo lugar, porque o empirismo, enquanto ‘uma força do hábito’ (é assim que interpreto essa forma de conhecimento), não é nem naturalista nem cético, como se costuma divisar e demonizar. Ele é, segundo creio, nessa liberdade de usar a escrita como um hábito, da esquerda para a direita e não o contrário, somente um estilo de compreender como age hábito quando em conjunção constante com o gosto e o refinamento. A experiência que coorganiza a experiência tão-somente acompanha a relação entre percepção, que nesse caso produz conhecimento direto, e mundo. Basta compreender, para expor a falácia cética e naturalista, a consequente aplicação contínua da negação no sentido de uma proposição obvertente. Uma definição, mediante a análise lógica por inversão em quantidade ou qualidade, serve-nos a fim de construir argumentos válidos em torno de uma teoria específica. Na obversão, a alternativa de interpretar o quantificador mediante a sua “negação” produz o efeito de inverter o sentido da proposição mediante a inversão da qualidade enunciada no predicado. Assim, se “Todo S é P”, então “Nenhum S é não-P”. Sendo assim, se “Todo empirismo é cético”, então é válido deduzir que que “Nenhum empirismo é não-cético”. Porém, se “Nenhum empirismo é naturalista” se deduz “Todo empirismo é não-naturalista”. E assim temos, por redução ao absurdo, que não importando a qualidade de atribuição à interpretação teórica, que o empirismo é cético e naturalista. Não há disputa nessa guerrilha de adjetivações: todo empirismo poderia ser cético ou naturalista e a convocação da antítese para interpretar uma personagem nesse teatro não resulta num processo dialético legítimo no jogo de atribuição categorial. “Nenhum empirismo é naturalista”, embora “Todo empirismo é não-naturalista” e tudo o mais continua na mesma.

Como o nosso tempo, o mesmo não ocorre com o espaço: as semelhanças aqui se diferenciam. O conceito de espaço medido exige logicamente a relação expansível entre um mundo atomizado de medidas uniformes ou não. Já com o tempo, a contraparte de interpretá-lo como um pseudoconceito é parte de um dogma mais profundo, qual seja, denegar ao conhecimento atribuição de valor epistemológico de base forte quando há exemplos em nossos empregos que pôs o conhecimento por relação do par causa/efeito em vinculação direta com esse mal-estar chamada de natureza humana. O empirismo, se vocês me permitem usa um palavrão nesses tempos de pudor, é um humanismo – e nada mais experimentado que através do exame de preceitos morais relativos... e é aí, aliás, que o empirismo mais tem a contribuir para a ética produzida hoje, por exemplo.

Voltando para a minha vida de casado, para concluir, espera-se que a minha esposa, como num filme Truffaut, vá dez minutos antes das 22h para a cama: é um mero acaso existirmos. Ora Eduardo, que dedução é essa? Pense bem, digo eu: ela simplesmente vai, com a força do acaso, unir, dado que passo de que não pensamos na proximidade da nossa própria morte, noite após noite, dia após dia, 10 minutos  antes com 10 minutos de 24 horas depois, num elo causal extremamente complexo que a razão teima em dessamelhar mas que eu notei: ela somente faz isso por que foi ensinada na infância que Kant dormir às 22h e acordava às 5h e que, por isso, a vida se torna mais sistemática e mesmos fragmentada quanto mais sistemático for a atribuição de acaso à ordem do progresso de vinculações de normalidade a eventos cotidianos que somente em aparência tem expressão extraordinária. Mas disso se sucede que o acaso não é uma regra coerciva da ficção do passado na construção da causa futura, mas sim que ao explicitar o significado da minha expressão linguística tenho para mim vinculações que desarranjam a rotina filosófica tradicional de situar o parâmetro epistêmico no elo da percepção e da produção de conhecimento através disso que se chama ‘retina’ e ‘globo ocular’. Ora, convenhamos, a lua é mais próxima do Brasil que os Estados Unidos. Mas aí já estamos falando do espaço e são outros quinhões. Por enquanto, fiquemos nos 10 minutos dessa leitura sobre um dogma chamado ratio.


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.

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Eduardo Novaes

Mestre em filosofia pela Universidade Federal da Bahia

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