Ensino de Filosofia e Currículo

Prof. Dr. Marcelo Carvalho

UNIFESP

02/11/2016 • Coluna ANPOF

Há muitas perspectivas diferentes no debate sobre o ensino de filosofia no Ensino Médio. Um dos temas mais relevantes diz respeito à “disciplinaridade” desse ensino, à maneira como a filosofia se faz presente no espaço da escola. Raramente se vê oposição à presença “transversal” do ensino de filosofia. A questão em nossa pauta é se ela deve ou não aparecer como “mais uma disciplina”.

O dilema dessa formulação é delicado: ou se aceita a diluição completa da filosofia em outras aulas (o que se faz acompanhar da ausência de um professor especialista na área e, no contexto brasileiro atual, equivale à sua exclusão do contexto escolar), ou se é colocado na desconfortável posição de defender a “disciplinarização” e fragmentação do ensino. Esse dilema é, entretanto, falso. Ele é montado unicamente em oposição àquilo que, de início, já se considera de “acessório” na formação dos estudantes de Ensino Médio. Uma escola em que a disciplinaridade é seriamente colocada em questão é uma escola interessante, mas difícil: eliminadas as disciplinas, faz-se necessário um outro elemento de organização e coesão do currículo e, nesse contexto, a filosofia dificilmente não ocuparia uma posição central. A escola de temas transversais e multidisciplinar é uma escola filosófica por excelência.

Mas há outras dimensões desse debate que devem ser observadas. A pergunta sobre o lugar e papel da filosofia na formação do estudante do Ensino Médio é relevante e merece respostas claras e diretas. Estas não são, entretanto, respostas simples. O debate simplista concebe o currículo como um conjunto de conteúdos a serem transferidos, na escola e pelo professor, a um exército de alunos que seria receptor passivo e ajustado a esses conteúdos. A questão aparece como se devêssemos listar esses conteúdos a serem transferidos aos alunos: estrutura celular, genética, inequações, método cartesiano, história francesa medieval. Não vale a pena argumentar contra essa imagem: basta descrevê-la em voz alta para que sua fragilidade se evidencie.

O trabalho de formação do estudante é, em sua maior parte, operacional, e até mesmo independente de conteúdos específicos. O conjunto de temas que se poderia dizer dever necessariamente constar dessa formação é extremamente restrito. E se ele não inclui a filosofia transcendental kantiana, também não inclui matrizes, detalhes da estrutura celular e modo de produção asiático. Por outro lado, entretanto, é fundamental que o estudante seja confrontado com problemas e com alternativas diversas de tratá-los, que lide com narrativas históricas, deduções matemáticas, ficções e raciocínios dialéticos, que compreenda que há um mundo astronômico, ondas eletromagnéticas e relações de produção. Esse trabalho é operacional em dois sentidos: de um modo mais evidente, ele capacita o estudante a lidar com situações, problemas e temas complexos e isso independe dos conteúdos específicos que são utilizados durante seu processo de formação. De outro, apresenta-se a ele um mundo mais vasto e plural, menos provinciano e óbvio. Caso seja bem-sucedido, esse ensino instiga o aluno a ter curiosidade sobre o mundo em que vive e a construir uma compreensão mais elaborada sobre sua experiência e sobre os fatos que o cercam. E é essa flexibilidade que o tornará, eventualmente, um bom profissional, além de uma pessoa com uma perspectiva mais plural sobre sua vida. Poucos são os temas tratados no Ensino Médio que se apresentam como relevantes por si sós. (E aquilo que é relevante por si, como sexualidade, relações de gênero e ética costuma ser deixado fora da sala de aula). Mas, em seu conjunto, os temas que se situam no contexto da formação escolar são parte de um processo mais amplo que define a identidade da escola contemporânea: da matemática e física à história e literatura, o que a escola apresenta (melhor ou pior) são mecanismos de sociabilidade, de construção da identidade e de inserção do aluno em uma sociedade e em uma época, de organização de sua compreensão do mundo e de suas relações dentro dele. Ela oferece elementos através dos quais se estrutura sua relação com o conhecimento, com responsabilidades, com a história e a língua, com outras pessoas e valores, com o trabalho e consigo mesmo. Mais uma vez, a pergunta pela relevância dos conteúdos de filosofia no currículo é um equívoco e uma armadilha: pouca coisa sobreviveria a esse critério de composição do currículo escolar.

E qual é a especificidade da filosofia nesse contexto de formação do aluno de Ensino Médio? Se mesmo a matemática, em sua maior parte, não se apresenta como conteúdo apropriado de modo imediato pela experiência prática e profissional cotidiana, mas se revela sobretudo meio de socialização nessa sociedade e nesse tempo, para quê precisaríamos da filosofia? Aqui se situa a “minha” resposta direta à questão sobre o sentido do ensino de filosofia: eu apresento nesse texto, a quem se dispõe a lê-lo, argumentos e refutações, redefinições conceituais e perspectivas alternativas sobre como compreender o currículo do Ensino Médio e o ensino de filosofia. Um elemento central nessa experiência de escrever e ler é lidar com argumentos, procurar perspectivas novas, situar o autor em contextos mais amplos, organizar raciocínios e expô-los. Poder participar desse debate (e de outros, sobre experiência cotidiana, mundo do trabalho, conhecimento, história, sexualidade) é condição a uma vida livre e plena nesse tempo e sociedade em que estamos. Não ser capaz de fazê-lo implica estar excluído de terrenos amplos e importantes de nossa convivência e ter nossa liberdade incontornavelmente restrita. O que a filosofia, no Ensino Médio e em qualquer outro lugar, apresenta são os meios para caminhar por esses terrenos: pluralidade de argumentos e perspectivas, estruturação do pensamento e um discurso argumentativo que apenas excepcionalmente aparece em outros contextos.

O aluno do Ensino Médio que é bem formado não é aquele que se recorda, pelo resto da vida, das equações de eletromagnetismo ou de história romana. É aquele que se apropria, com liberdade, de conhecimentos e argumentos, que aprende a aprender as mais diversas coisas, que ouve e fala de modo plural e claro. O ensino de filosofia no Ensino Médio não se justifica pela relevância de conhecer Tomás, Descartes ou Hegel. Mas o mesmo vale para as outras disciplinas. Que esse ensino se faça por referência a uma história da filosofia é relevante, mas secundário. Ele se apresenta como necessário por ser formador do estudante em um sentido fundamental e dificilmente suprido de outro modo. Que isso seja difícil de se efetivar, e que as aulas de filosofia precisem ser melhor concebidas e organizadas também é relevante, mas também secundário. Excluir a filosofia do Ensino Médio retira do estudante a possibilidade de acesso a alguns dos instrumentos fundamentais para sua autonomia. E retira da imagem de sociedade que se constrói através da educação básica a afirmação clara da pluralidade e do debate que são pressupostos à democracia e à vida em nosso tempo.

02 de Novembro de 2016.

DO MESMO AUTOR

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Prof. Dr. Marcelo Carvalho

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22/12/2017 • Coluna ANPOF