Filosofia no Brasil - Ensaios Metafilosóficos

Ivan Domingues

UFMG

02/09/2017 • Coluna ANPOF

Notícia sobre o Lançamento e Comentários

Acabo de lançar pela Editora UNESP o livro de minha autoria Filosofia no Brasil: Legados e Perspectivas – Ensaios Metafilosóficos, culminando um momento importante em minha carreira, ao fazer um acerto de contas comigo mesmo, como filósofo, como intelectual e como brasileiro.

Não podendo sumariar-lhe o conjunto, com suas 560 páginas, organizado em seis passos argumentativos, recobrindo quinhentos anos de nossa história, e adiada a apresentação do seu making of para uma outra ocasião, vou na sequência apresentar brevemente aos leitores da Página da ANPOF o seu escopo, junto com o tema central ou seu hardcore e as hipóteses de trabalho.

Começo pelo escopo: como bem mostra o título completo, colocando em evidência em uma de suas metades legados e perspectivas, que o leitor interessado nestas matérias não espere que vai ter às mãos um livro de história da filosofia ou da história da filosofia brasileira, nem, menos ainda, de um livro de exegese de um autor ou de mais autores. Trata-se, antes, de um livro de ensaios, tendo por eixo o cruzamento entre a metafilosofia e a história intelectual. A consideração e aceitação desses pontos são fundamentais para a compreensão e a avaliação da proposta levada a cabo com intenções e metodologias diferentes, como veremos na sequência, entrando a história da filosofia e a exegese filosófica como fonte, meio e ferramenta, não como tema, problema ou objeto.

Um livro de ensaios, com efeito: ensaios de tamanho variado, pois ensaios não se medem a metro, como aliás já tinha notado Montaigne, que inventou o gênero e publicou os seus Essais com três volumes, perfazendo mais de 1300 páginas na edição de Villey, entremeando ensaios muito curtos (Da ociosidade p. ex.: 2 p.) e outros longos (Apologia de Raymond Sebond: cerca de 170 p.). Este é o meu caso, ao organizar o livro em seis passos argumentativos, variando de 50 a 130 p.

Ensaios de metafilosofia: em sua origem, como eu comento no Prefácio, consistindo na retomada do meu O continente e a ilha e na recalibragem do aparato argumentativo ao novo contexto, não mais a América do Norte, a Inglaterra e a Europa, mas o Brasil – e no mesmo compasso, mas com circunscrição diferente (efeito de contexto: colonial, neo-colonial, etc.), exigindo a introdução de novos tours de forces analíticos ao se perguntar pela ratio da filosofia brasileira ou feita no Brasil, a saber, a ratio da segunda escolástica ou o torneio dialético, a ratio do bacharelismo jurídico ou o retoricismo, a ratio do scholar moderno clivada entre a tecnicidade lógica e a erudição histórica, etc.

E ensaios de história intelectual, num sentido próximo do historiador francês Serinelli em seu livro essencial Les intellectuels en France de l’affaire Dreyfus à nos jours: ou seja, na acepção de história dos intelectuais ou antes da corporação dos intelectuais, ao focalizar a terceira república e o intelectual republicano, tendo como modelo Emile Zola e o affaire Dreyfus, requerendo a introdução de um conjunto de tours de forces no reenquadramento não mais da França, mas do Brasil, não mais da política mas da filosofia, e redundando numa meta-narrativa filosófica.

Como bem mostra o release da UNESP, o livro consiste na fusão dessas duas vertentes teórico-metodológicas, levando-me a trabalhar in fine uma imensa literatura filosófica e historiográfica específica. Na vertente metafilosófica, a buscar os embasamentos históricos da filosofia nacional em Cruz Costa, Paulo Arantes, Lima Vaz, Silvio Romero, Tobias Barreto e vários outros. Na vertente da história intelectual–dilatada ao longo do livro rumo à história social e cultural, acarretando a incorporação dos chamados pensadores do Brasil – numa outra perspectiva, pré-republicana, somando-se à obra de Serinelli o não menos essencial Os intelectuais na Idade Média de Jacques Le Goff, ao distinguir: [1] a figura do clérigo medieval, cujo ofício deintelectual era exercido nas escolas catedrais, bem como nas universidades do medievo, fundadas no curso do século XIII; [2] a figura do goliado: do latim goliardus, vocábulo de etimologia incerta, podendo designar gula em latim, próximo de goela em português (gulela = diminutivo) e ainda alegre em francês (gaillard) – agrupamento identificado por Le Goff com o intelectual desgarrado e caracterizado pelo inconformismo, em meio do mais desabusado dos individualismos e não tendo nada de orgânico e do clerc. Este, no Brasil Colônia, não sendo outro senão o intelectual da Igreja, consagrado em seu ofício de ensinar como um apostolado, com o clérigo jesuíta na linha de frente; aquele típico do século XIX, ao designar em nossas terras o diletante desgarrado proveniente do direito.

Ao me ocupar dessas figuras, na esteira das distinções estabelecidas para o Brasil Colônia e Pós-colonial, fui levado a usar a metodologia dos tipos ideais de Max Weber, com bastante liberdade, em vista dos meus problemas e à consideração de meus próprios fins, como variante da técnica da construção de modelos, ao correlacionar os fatos e os contrafatos da experiência ou ainda os possíveis lógicos e os data da realidade, resultando em cinco figuras intelectuais, das quais me ocuparei na sequência. Ao me referir às tais figuras, passo àquilo que será o hardcore ou o âmago do livro, como dito, ou seja:

[1] o intelectual da Colônia ou o jesuíta, cujo modelo é o intelectual orgânico da Igreja de que fala Le Goff ao se referir ao intelectual medieval, cuja figura emblemática no Brasil Colônia é o Pe. Vieira, cujas atividades transcendiam largamente a filosofia, e cujo protótipo do “lente” de filosofia, como era chamado o professor daquela matéria na época, eu encontrei em Francisco de Faria que atuava no Colégio da Cia do Rio de Janeiro: escolhido por sua credencial de orientador da única tese de filosofia defendida no Brasil que sobreviveu à fúria destruidora de Pombal e dos portugueses contra a Cia de Jesus no fim do período colonial – de autoria de Francisco Fraga, defendida em 1747, cujo exemplar (um grande cartaz contendo o resumo, como era comum na época, usado como peça de divulgação) pode ser avistado na entrada da biblioteca da FAJE, em Belo Horizonte, e cuja foto eu forneci na p. 206 do livro;

[2] o intelectual do Império e da República Velha, cujo modelo é o diletante estrangeirado egresso do direito, tendo como protótipo Joaquim Nabuco, ao se referir a si mesmo como intelectual e político, como anglófilo e estrangeirado, e cuja figura mais emblemática em filosofia é Tobias Barreto: havia outras alternativas, como Farias Brito, também ele oriundo do direito; o escolhido foi Tobias, cuja preferência se prendeu à situação única de sua obra filosófica ter dado vazão às primeiras publicações do gênero ensaio entre nós, e em cujo gênero se pode ver como típico do diletante estrangeirado em nossos meios ou aquele melhor ajustado ao ethos inquieto e impaciente do goliardo;

[3] o intelectual do Brasil moderno, cujo modelo é o Scholar, surgido na esteira da Missão Francesa em São Paulo, ao fundar do Departamento de Filosofia da USP, consistindo na fusão (a) do virtuose das belles lettres francesas, polarizado por Maugüé e Gueroult, e (b) do expert americanizado das ciências duras, que se consumará depois, nos anos setenta: hoje na filosofia uma legião, saída da fôrma do SNPG da CAPES, o Homo Qualis, bem como do CNPq, o Homo Lattes;

[4] o filósofo intelectual público contemporâneo, fusão do Scholar e do Intelectual público das Humanidades, com a agenda política somando-se à filosófica, e cujas figuras mais emblemáticas na filosofia brasileira são Giannotti, Marilena e Pe Vaz, este menos conhecido nos dias de hoje e que mais jovem fora mentor da JUC bem como do documento-base de fundação da AP, seção filosofia, ou seja: a Ação Popular, um agrupamento de esquerda católica muito influente na vida nacional nos anos sessenta, e de cujo perfil, do Vaz político, Paulo Arantes forneceu um pungente depoimento-obituário, depois do falecimento do ex-mestre, e publicado pela revista Síntese em 2005;

[5] o filósofo cosmopolita globalizado, propriamente o pensador, próximo do polímata de horizontes largos ou do sábio antigo, não exatamente fundado ou modelado sobre uma história real desenvolvida ou passada em nossos meios, na Terra Brasilis, mas como figura especulativa e sondagem do futuro, permeável à metodologia dos tipos ideais de Weber e consistindo no inventário dos possíveis como viu Oswald Ducrot. Ou seja, uma figura ideal cuja plausibilidade fica na dependência do “ensanduichamento” do possível frente ao real, baseado na consideração dos possíveis lógicos e das coerções ou restrições da realidade, brasileira no caso. Especificamente, ao contrastar a possibilidade do advento do nosso Rawls ou do nosso Habermas ou do nosso Foucault ou simplesmente vingar um novo mandarim e dar vazão em nossos meios a um novo mandarinato: o mandarinato do Scholar, no sentido chinês da expressão (corporação dos mandarins, e portanto dos scholars) que a esta altura venceu, não só aqui, mas nos quatro cantos do mundo, promovendo a preferência por uma visão técnica da filosofia, a qual segundo Heidegger leva à morte do pensamento – donde um certo pessimismo com que a análise do intelectual cosmopolita é concluída, ele que deve ser visto como o ideal ou ápice da experiência intelectual e filosófica, um ideal que não se cumpriu no Brasil, daí a ausência de nomes. Certamente, não só devido à barreira dos novos mandarins, e com a ressalva de que a falta atual de nomes dessa estirpe de pensadores não é um mal apenas nosso, mas um fenômeno mundial, conforme eu mostro no fim do livro.

Finalizo a notícia do lançamento, apresentando a hipótese ou, antes, as hipóteses, pois um livro com um escopo tão vasto, não pode se contentar ou contar com apenas uma: reenviadas umas à vertente metafilosófica da pesquisa; outras à vertente histórica ou, antes, historiográfica. Assim, na vertente historiográfica, a hipótese da deficiência institucional e cultural, formulada pelos Pes. Leonel Franca e Henrique Vaz, associada à hipótese da fragilidade demográfica, somada à hipótese da escala, demandando comparações, e respaldada com informações históricas e dados estatísticos (argumento dos “grandes números”), levando-me a trabalhar um sem-número de fontes extra-filosóficas: ratificada a hipótese do déficit no Brasil Colônia e Pós-Independência, até a República Velha, e neutralizada no curso do século XX, depois que as universidades foram criadas. Na vertente metafilosófica, recobrindo a um tempo a ratio e a littera (gêneros literários correntes em filosofia: tratado, ensaio, sistema, artigo), cuja fusão resultará na techne filosófica, levando-me a explorar no tocante à littera, por um lado, a postulação do tripé semiótico autor-obra- público de Antonio Candido; por outro, a distinção também de Candido entre sistemas literários, caracterizados pela organicidade, seriação e auto-referência, e obras episódicas ou esparsas, caracterizadas pela aleatoriedade e inorganicidade – ambas estendidas como hipótese à filosofia, exigindo ajustes e recalibragens. Por sua vez, no tocante à ratio, a explorar seus diferentes lastreamentos ou modalidades, resultando em sua historicização: como já comentado, desde os certames da segunda escolástica tipificados pela Ratio Studiorum, passando pelo retoricismo do bacharel letrado diletante em filosofia com seus floreios, mesuras e argumentos ad hominem, até os métodos do scholar moderno, polarizado pelo virtuose francês das letras, de vasta cultura e caracterizado pela erudição histórica, e o expert americanizado modelado pelas ciências duras, especializado em campos do conhecimento, com recortes menores, e caracterizado pela visão técnica da filosofia.

Concluo essas considerações acrescentando a hipótese axial que permitiu a unificação das duas vertentes da pesquisa, a saber: o cálculo inicial, assumido como pressuposição, ou como conjectura, se se preferir, ao supor que este seria o melhor caminho, consistindo em procurar a experiência filosófica e da intelectualidade onde elas normalmente podem ser achadas ou onde elas se encontram objetificadas: nas instituições, nas revistas e nos livros, largamente evidenciada (a hipótese) no caso do intelectual orgânico da Igreja e do sistema de ensino dos jesuítas, assim como no caso do o Scholar e da FFLCH da USP, além daquela extração enorme saída do SNPG da CAPES e espalhada hoje por todo o país. Porém, não exclusivamente, havendo outras possibilidades e variações, com a consequente exigência de introdução de contrapontos e hipóteses auxiliares ad hoc: como a filosofia encontrada no mundo e fora dos muros da academia, ratificada pelas figuras e os exemplos do intelectual público, cuja atividade se inscreve no espaço público da cidade (polis), bem como pelo caso do goliardo diletante que poderá ser encontrado nas repartições públicas, nos bares ou cafés e mesmo nas academias, como autodidatas improvisados, e ainda “profissionais” de primeira grandeza, como Benedito Nunes, que se dizia autodidata em filosofia. Por fim, o intelectual cosmopolita globalizado, na esteira do cosmopolitès antigo, ou mesmo do polímata, no último passo argumentativo do livro como figura especulativa, projetado para o futuro e desterritorializado, como mostra o exemplo de Kant, que era um cidadão do mundo, sem nunca ter saído de sua cidade natal.

A pergunta que fica, depois de termos tido Machado de Assis e Guimarães Rosa, às voltas eles com o local, com personagens ambientados na Rua do Ouvidor do Rio de Janeiro e nos Sertões longínquos dos Geraes, e no mesmo compasso universalizando a nossa literatura, como todo mundo reconhece; e, assim, na esteira deles, mais amadurecidos hoje em outros campos da cultura e com a nossa filosofia tendo superado os gaps históricos, adquirindo o padrão internacional – a pergunta que fica, portanto, é se um dia teremos o nosso Machado, o nosso Rosa e o nosso Kant em filosofia. E por que não? – bem poderia ser a resposta, na forma interrogativa, num misto de dúvida, de esperança e de desafio.

 

ANPOF 2017-2018

 

 

 

 

 

 

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