HOMENAGEM - Memória do professor José Cavalcante de Souza

05/06/2020 • Coluna ANPOF

Prof. Dr. Cassiano Terra Rodrigues

 

Há poucos dias, tive a notícia do falecimento de José Cavalcante de Souza, de quem fui aluno por uns poucos semestres no início da minha graduação. Em princípio, não planejei escrever nada, mesmo porque meu contato com ele foi reduzido. Mas nesses tempos de tantas perdas e poucos ganhos, achei que talvez meu relato pudesse trazer algum alento a qualquer pessoa e talvez ajudar a construir uma memória coletiva daqueles anos, não apenas distantes, mas tão diferentes do que vivemos hoje que a mim ao menos parecem ter acontecido numa outra galáxia.

Eu nunca fui um bom aluno de letras clássicas, quem dirá de filosofia platônica. As aulas do professor Cavalcante eram, para mim, um tanto quanto espetaculares: ele lia em voz alta ao
mesmo tempo em que já traduzia o texto em grego imediatamente, com um sotaque nordestino inesquecível, adicionando algo de indescritível à dramaticidade da leitura! Outros colegas lembraram que ele chegava a se emocionar ao fim de algumas aulas, tamanha sua imersão no texto. Não era fácil acompanhar, muitas vezes era muito cansativo, eu não tinha compreensão e nem concentração para a exigência de leitura do prof. Cavalcante. Sua tradução do Banquete, de Platão, e dos Pré-socráticos, já eram conhecidas, já eram clássicas. Às vezes, ele usava uma ou outra tradução de outros, por comodidade, é claro. Mesmo assim as digressões eram inigualáveis, talvez mais do que o fio da leitura em si. Esse grau de liberdade que ele tinha me influenciou, acho que minhas melhores aulas são aquelas em que não sigo rigidamente um roteiro, nunca me dei bem com roteiros pré-estabelecidos, e alguns estudantes já me disseram isso também. Lembro-me ainda de uma entrega de trabalhos quando ele nos recomendou estudar mais a língua portuguesa, sem o que ficava difícil aprender qualquer outra: "Vocês não sabem usar pronome relativo, precisam aprender. Usam 'que' para tudo, o que querem dizer fica ininteligível." Senti uma vergonha terrível nesse momento! Minha mãe fora minha professora de língua portuguesa e eu achei aquela situação vergonhosa, mesmo que o meu texto não tivesse erros dessa natureza. Mas era a minha classe, a minha turma, e entendi ali um pouco do quanto faltava aprender. Ainda tenho guardado o trabalho que escrevi sobre o Teeteto e o professor Cavalcante corrigiu. Não é nada de que me orgulhe, mas as poucas anotações do professor Cavalcante foram diretas e esclarecedoras, nas quais consegui reconhecer imediatamente uma postura pedagógica genuína: ele não criticou o trabalho ou as imprecisões conceituais. Ele me aconselhou a mudar a maneira de me relacionar com o texto que eu escolhera para examinar. Observe-se que, àquela época, o professor Cavalcante já era quem todos sabemos e eu estava no primeiro ano de graduação: e era um curso básico, de leitura de diálogos de Platão, como propedêutica à leitura da Politeia. Pensando nisso, hoje, foi um privilégio e tanto! Se um renomado professor dar aula ao primeiro ano não é algo exatamente raro hoje em dia, naquela época não era tão corriqueiro e ainda hoje é louvável, porque o oposto é muito comum, isto é, há professores renomados que menosprezam a graduação (mesmo que não o digam). Naquela época, a graduação da UNICAMP, por mais desorganizada fosse (dada sua recém criação, posterior à PG), era nesse sentido privilegiada. Ou ao menos eu talvez queira achar. Seja como for, digo isso porque ainda hoje alguns professores que não são tão renomados assim consideram que lecionar é um pedágio obrigatório para poder se dedicar a pesquisar o que quiserem, pois se pudessem não lecionariam. E isso eu ouvi mais de uma vez, de mais de um colega da minha própria geração. Acho essa ideia simplesmente desprezível. Talvez essas pessoas tenham da docência uma concepção restrita ao ensino e isenta de aprendizagem. Talvez não gostem nem de si mesmos, como diz a anedota. É claro, lamento que não existam no país múltiplas e variadas instituições de pesquisa, cada uma com uma diferente finalidade, muitas bolsas de estudo e financiamento garantido. Mas lamento muito mais ouvir declarações dessa natureza de pessoas que escolhem neste país a carreira acadêmica como carreira de projeção pessoal, mesmo com conhecimento de nosso contexto, sem nada ou muito pouco fazer para mudar qualquer coisa, apenas desejando estar em Paris ou New York ou sei lá onde, reclamando do governo malvado que nos tolhe a liberdade e as bolsas de pesquisa. Bem, eu também reclamo e luto como posso contra as reduções de verba, cortes na educação, na pesquisa, precarização das nossas condições de trabalho, mas essa postura de menosprezo quanto à docência me parece como a de um símio que, tendo aprendido a usar o serrote, serra o próprio galho onde se sustenta.

O professor Cavalcante me pareceu lá atrás já o oposto disso, e me parece ainda agora. Não endossei algumas de suas escolhas quando eu mesmo estava envolvido em política estudantil e sei que, como outros professores de antigamente, ele tinha suas posturas controversas. Mas ao menos alguma coisa eu aprendi com ele e não tem nada que ver com essas suas atitudes profissionais, mas teve um grande impacto sobre a minha maneira de encarar a profissão. Em 1990 e alguma coisa, ele já aposentado, morava em Valinhos numa chácara. Eu e Janaína Damaceno decidimos entrevistá-lo para um jornalzinho dos alunos de filosofia pretensiosamente chamado Láquesis. Consegui o telefone do professor Cavalcante na secretaria, a muito custo, para combinar. Liguei. Ele, em princípio algo indiferente, aceitou ser entrevistado e nos chamou a ir à casa dele, em Valinhos, fazendo questão de ir nos buscar de carro na rodoviária: "Eu moro um pouco afastado da cidade, é melhor do que vocês pegarem outro ônibus." Nessa ocasião, ele não só nos recebeu, como ficamos na casa dele ali umas boas 4 horas. Com uma simpatia que ao telefone não demonstrara, ele respondeu com generosidade e uma sincera humildade a todas as perguntas mais ou menos óbvias que lhe fizemos, mesmo as mais carregadas de uma afoita pretensão própria da juventude filosófica (-"Os gregos optaram pela verdade ou pela beleza?" Ao que ele riu um riso maroto e disse: - "Vocês estão lendo muito Nietzsche..."). Além disso, ele nos falou da sua preocupação em não publicar todas as traduções que tinha feito, principalmente a da Metafísica de Aristóteles (-"traduzir grego clássico é um trabalho de uma vida, não estou seguro da qualidade"). Vi um brilho vivaz no seu olhar quando ele lembrou do seu próprio fascínio juvenil pela literatura clássica, quando ainda era adolescente e estudava na região do Crato-CE, sua terra natal (- "líamos e traduzíamos muita literatura, poucos ingleses, lembro de Robert Herrick, mas eram mais franceses mesmo, como Corneille e Rabelais. Mas Racine foi fundamental pra mim, peguei gosto pela coisa toda por causa de Racine."). E nos divertimos e rimos quando ele contou ter sido quem colocou o primeiro poste na esquina da Avenida Rebouças com o que viria ser a Avenida Faria Lima (ou ali nas redondezas, não lembro bem), no ponto de ônibus mais próximo da sua casa: uma taquara alta com uma lâmpada e um fio vindo da sua própria casa ("Foi o primeiro poste, era o único na subida toda e até o largo de Pinheiros também."). Esse poste, segundo sua esposa, dona Conceição, foi o primeiro de alguns outros que ficavam no caminho de onde ele ia jogar umas peladas ali na várzea do Rio Pinheiros e ajudavam a iluminar a várzea-campo no fim da tarde. Essa teria sido a real finalidade dos postes, segundo ela, e não necessariamente contribuir com a iluminação pública dos pontos de ônibus.... Ao fim da tarde, depois de tomar café, ouvir ele e a mulher falarem do amor e da admiração pela literatura, pela filosofia, e sobretudo pelas filhas bailarinas, depois de bater tanto papo, enfim, ele nos deu a carona de volta ao terminal de ônibus para regressarmos a Campinas, desejando que voltássemos a nos ver e dizendo estar à disposição ("É o que posso contribuir agora com vocês jovens que chegam".)

A entrevista, gravada em fita K7, nunca chegou a ser transcrita e editada para a publicação. Mas eu ainda tenho as fitas, nas quais a Janaína gravou tudo o que conseguiu, inclusive algumas declarações ele pedira para não publicar (algumas críticas acadêmicas, a tradutores, nada importante). Infelizmente, não lembro de ter fotografado, fotografia não era como hoje.

Mais algumas vezes ainda nos encontramos na UNICAMP, por acaso, e ele vinha perguntar: "E aquela entrevista?" e eu dava alguma desculpa, ao que ele sorria e perguntava mudando de assunto: "O que você vai estudar na pós? Filosofia da linguagem? Semiótica? Isso é difícil, mas você dá conta, tem que estudar...". Bem, não sei se dei conta, mas continuo estudando.