Meditações desocupadas sobre ocupações por toda parte

Vinicius Berlendis de Figueiredo

Professor do Departamento de FIlosofia da UFPR e ex-presidente da Anpof

10/11/2016 • Coluna ANPOF

aos secundaristas do Colégio Estadual Padre Arnaldo Jansen, de São José dos Pinhais

Cena 1

“Tá comendo?”

“Eu? Não.”

“Então manda ela embora”.

Calma. Se você estiver lendo esse texto, provavelmente não está sob o fio dessa navalha. A Anpof é uma zona de conforto. E mesmo no setor privado, não é sempre assim. Você poderá vir a ser respeitada no trabalho. Basta que seja competente e, por cautela, evite esmaltes como o “Beijo roubado”. Você vai ganhar bem menos do que um adulto que faz a mesma coisa, de modo igual ou pior do que você. Mas será respeitada. É que respeito nada tem que ver com salário. Empresários schumpeterianos tupiniquins sabem como tratar respeitosamente uma mulher. Basta você deixar isso claro na linguagem deles. Pagarem mal, no fundo, é uma forma de respeito, pois você, se não é puta, não devia estar trabalhando. As empresas de hoje têm ótimos contratos, você poderá ocupar uma excelente posição.

 

Cena 2

“Como é possível que esse sujeito ganhe aposentadoria integral às minhas custas? É isso o que acaba com o Brasil. Não é justo que os trabalhadores do setor privado, dando um duro danado em meio a essa crise, financiem esses incompetentes de merda”. E a versão soft do mesmo texto: “O déficit da Previdência deve-se especialmente ao setor público, cuja reforma é im-pres-cin-dí-vel. Na atual situação, um trabalhador do setor privado tem de sustentar dois trabalhadores do setor público, o que não é justo”. Quem o diz é uma das jornalistas mais respeitadas da casa. A maioria do público da Emissora fecha com ela. A jornalista costuma ser flagrada nos restaurantes mais caros do Rio e de Brasília. Visto estarmos numa democracia, há quem divirja, e geralmente são os privilegiados – leia-se, os funcionários públicos. Como a maioria deles (inclusive dentre os professores universitários) é masculina, muitos se perguntam como essa jornalista, feia do jeito que é, pôde tornar-se tão respeitada no meio, ocupar todo esse espaço na mídia.

Cena 3

“Também voltando de Paris?”

“Sim, vou praticamente todo ano, com uma bolsa de estudos do governo. Passo um mês pesquisando. E você, férias?”

“É, quando faço uma boa cota no fim de ano, a empresa libera quinze dias nessa época, aproveito e vou com a família.”

Eles se olham, se medem, hesitam, se desprezam. Na esteira, as malas de um e outro são parecidas. Não chegam a ser top, tampouco são chinfrins. Um indício de que ganham mais ou menos o mesmo, que são classe média – em sua versão classic, não lulo-petista. Um aspecto nada irrrelevante, como sabe a tradição materialista. Se equivalem? Um professor universitário e um administrador de empresas? Mal se conhecem, no máximo trocam algumas palavras na academia do clube. De fato, muito do que dizem permanecerá inviolável para o outro, como o rito de um povo distante, violento, primitivo: “bolsa de estudos”, “cota”, “pesquisa”, “empresa”, “Tucídides”, “ganho”. Daí que, no silêncio dos pensamentos, ambos se atenham ao principal: “esse aí é um vendido para o capital que não tem noção de nada; alienado de merda, professorzinho que não trabalha e passa um mês vadiando em Paris; coxinha, na certa, petrália” – tudo assim misturado, já que diferenciar as vozes é irrelevante, a não ser para quem ainda acredita que vai se salvar pelas ideias que professa por aí. Estão mais ou menos quites: cada um pega sua mala, o professor olha inteira a mulher do administrador, no mesmo momento em que o administrador pensa na bunda da funcionária que o chefe sugeriu que ele mandasse embora. O professor se aborrece porque terá de prestar contas para a maldita agência de fomento: onde já se viu, essa cobrança agora pelo que pensamos? O administrador, antecipando o esforço que terá de fazer para realizar novas metas, cogita que, nesse mundo hostil, merece uma prenda no serviço – o que irá beneficiar a todos, já que, assim, a menina terá emprego assegurado por mais um tempo. Se a crise não tragar o universo inteiro, talvez o professor e o administrador se reencontrem no aeroporto ano que vem, para nova troca de ideias. É fundamental ao país a retomada dos investimentos; é fundamental recobrar a confiança dos agentes, assim como aprofundar a pesquisa científica e sua interface com a economia privada e, desse modo, ocupar novos mercados.

Narrador iluminista em off

Uma boa escola pública universalizada ajudaria a fazer a maioria começar meio parecida. Mas, como ensina a cena 3, não basta alcançar uma equivalência qualquer. É preciso pensa quais valores serão socializados. Se, além de transmitir competências, a escola também for um espaço de “reflexão” (palavra vadia, sem vergonha!), meninos e meninas poderão descobrir que nem tudo é porrada; poderão se tornar mais próximos daquelas vinhetas de propaganda eleitoral dedicadas à educação, em que criancinhas e jovens de todas as cores aparecem num “livre jogo” entre imaginação e entendimento. Isso já seria formidável. Nesta república platônica, questões de gênero seriam intercalas com aulas de música, não para se aprender a diferença entre o rondo e a canção, mas para munir-se do mínimo indispensável à vida civilizada: cuidar de não atravessar o ritmo; dar umas soladas, mas também saber acompanhar o solo alheio; descobrir que é possível fazer juntos algo que tenha começo, meio e fim em si mesmo, sem demanda alguma, senão a de socializar-se. Meu currículo ideal também teria umas aulas práticas, o “educando” aprender como funciona, não apenas a marcenaria, mas o mercado financeiro, imobiliário, de trabalho. Não sou contra preparar os jovens para a vida profissional, desde que isso não signifique jogá-los indefesos na arena dos empresários schumpeterianos tupiniquins. Se isso acontecer como vem acontecendo, terão poucas chances, mesmo recebendo alguns trocados. A rigor, crescimento do PIB, expansão do crédito e pleno emprego sozinhos não garantem que o mundo se torne um um lugar menos pavoroso. O último romance de Fernando Bonassi (Luxúria. Record: 2016) retrata isso muito bem. A briga pelo currículo do EM diz muito do que setores da sociedade brasileira almejam para ela. E parece haver diferenças irredutíveis, a começar pela forma de se encaminhar essa reforma.

Crítica do ponto de vista iluminista pelo viés libertário

Este objetor recém chegado, mas de enorme prestígio, diz que se engana, quem pensa que é uma questão de cognição ou de entendimento ou, o que dá no mesmo, que a educação possa mudar as coisas. Pois cada um entende o que quer entender, ponto final. Ninguém menos que Kant o admite, quando comenta sobre a preguiça que assola a maioria, na hora de fazer uso do próprio entendimento. E convenhamos, quase sempre Kant está com a razão: a preguiça possui uma inegável contundência. Por exemplo, você já se deu ao trabalho de tentar entender seriamente por que alguns milhões de brasileiros foram à rua pedir o impeachtment? Custa esforço, o resultado pode ser frustrante. A preguiça também contamina os iluministas. É assim que o representante das Luzes entra em cena e, sem que os personagens possam nem mesmo dar-se conta, dirige estas palavras ao respeitável público: “perdoai-lhes, eles não sabem o que fazem”. Seu papel resume-se a entrar em cena, proferir essa frase, retirar-se.

A crítica do Iluminismo inflete numa política que vê como única solução ocupar tudo. Tomemos a cena de assalto, desfaçamos esse negócio de autor pra cá, público pra lá, atores que fazem discursos que foram cogitados (e financiados!) pelos outros. “Findaram-se os tempos da representação!”, brada um Afeto enorme e sem nome. E mais: a escola pode ser tudo, basta que não seja “escola”. A alta filosofia ensinou que a significação autêntica está aquém ou além da linguagem, menos nela mesma. Ninguém, salvo o Povo, saberá proferir seu próprio desejo.

A via intermediária

Há dois aspectos significativos nas ocupações. Um, iluminista; outro, libertário. Seria desejável que, corrigindo-se mutuamente, caminhassem juntos. Até porque, nesses tempos bicudos, isso pode ter alcance mais amplo. A questão transcende as escolas do EM. “Ocupação” traz à tona a dimensão mais palpável, física da política: quem está ocupando este espaço? O que será preciso deslocar ou extinguir, a fim de desocupá-lo? Outras cenas se imiscuem: quem é dono dessa força de trabalho feminina, frequentemente submetida a condições tais como o assédio constante e o salário precarizado? Quem é proprietário desse complexo de edifícios chamado Emissora, esparramado soberanamente pelo país, que assiste, da manhã a altas horas da noite, ao mesmo canal, transmitido de esquina em esquina? De quem é a bolsa de pósdoc: do pesquisador ou da política pública que o financia?

Legislação trabalhista, regulamentação da mídia, aposta em agências de avaliação e fomento pedagógico-científico têm em comum serem ações de regulação do Capital pelo Estado. Embora diferentes entre si, todas passam pela definição de parâmetros para a iniciativa privada ou do retorno do investimento público baseados em alguma forma de negociação entre os agentes envolvidos. A reforma do EM é paradigmática, pois a escola é a ocasião privilegiada para a sociedade refletir os acordos que faz consigo mesma. Que pais, professores e alunos (ei-los, os futuros cidadãos) participem desse debate, isso deveria ser óbvio. Como disse esta semana em visita a São Paulo Tiina Tahka, coordenadora do currículo do EM na bem sucedida Finlândia, lá “todas as reformas importantes foram feitas em cooperação com os alunos”. Aqui, não. A MP cogitou sua reforma com outros agentes, como fica claro, por exemplo, quando prevê que "centros ou programas educacionais” (financiados pela Fundação Lemann, Itaú, Instituto Unibanco, Inspirare, Natura) poderão fornecer cursos presenciais ou não-presenciais aos alunos/estagiários. Em princípio, nada contra entabular discussões desse tipo, envolvendo flexibilização do currículo, parcerias, etc. Mas não estamos na Finlândia. Aqui, ao invés de conversar com estudantes ou professores, Ministro recebe Alexandre Frota, e o governo faz suas próprias ocupações, como quando resolve definir, por decreto, qual deverá ser o novo perfil do EM. Mais que ocupar, os estudantes começaram a reaver seu papel na instituição escolar como espaço privilegiado da produção de nossa subjetividade, alertando a quem tiver de escutá-los que esse projeto também lhes pertence. Quando se pensa na violência de gênero, nas relações de trabalho no setor privado, na vocação corporativista do setor público e na mídia unificada, esse gesto aparece como a brecha por onde talvez o futuro volte a respirar por aqui.

10 de Novembro de 2016.

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