O olhar distorcido: a filosofia brasileira segundo Murilo Seabra

João de Fernandes Teixeira

Professor aposentado da Universidade Federal de São Carlos

05/05/2022 • Coluna ANPOF

No seu livro Oftalmopolítica o filósofo brasileiro Murilo Seabra (doutor pela LaTrobe University, AU) aborda questões que, atualmente, inquietam muitos professores e estudantes de filosofia no país. Por que não existe filosofia no Brasil se temos uma das maiores comunidades filosóficas do mundo? Será que a filosofia no Brasil não existe ou somos incapazes de enxergá-la? Teremos, algum dia, uma filosofia autoral?

Há quem afirme que uma filosofia brasileira seria desnecessária, pois a ideia de nação se tornou obsoleta. Essa é a posição defendida por alguns intelectuais públicos de esquerda. Eles alegam, também, que por razões históricas o Brasil nunca poderia ter filósofos, mas apenas professores de filosofia. Talvez não precisemos, de fato, de algo como uma filosofia genuinamente brasileira. Mas faltam filósofos brasileiros na ágora internacional, pensadores com ideias próprias que reflitam, de modo inovador, sobre questões contemporâneas e não apenas defensores de posições filosóficas consagradas.

Há quem tente resgatar uma filosofia brasileira olhando para nosso passado pré-colonial. Mas não encontraremos sistemas filosóficos nos séculos que precederam os portugueses, pelo menos não no sentido atribuído à palavra “filosofia” como a entendemos na historiografia tradicional. A mesma dificuldade parece ocorrer quando tentamos resgatar algo parecido com uma história da filosofia brasileira. A expressão “filosofia brasileira” acaba se tornando um termo guarda-chuva, que engloba todos os intelectuais, desde a era colonial, que refletiram sobre as mazelas nacionais ou divulgaram ideias importadas da Europa. Ou que simplesmente perguntavam porque o Brasil não é capaz de produzir sua própria filosofia.

Atualmente, em tempos de globalização (ou do fim dela) não faz muito sentido atribuir nacionalidade ao pensamento. Não tem cabimento falar de filosofia brasileira, mas de filosofia no Brasil e de filósofos brasileiros. Além disso, penso que a razão é universal. Isso cada se tornou evidente com a expansão das trocas de informação pela internet e com a possibilidade de tradução automática de idiomas (ainda que imperfeita). Tecnicamente – mas apenas tecnicamente – pouco importa onde vivem os filósofos e qual é a cor de seus passaportes. O que importa é sua capacidade de revisitar questões tradicionais ou de agregar novos temas à filosofia. 

Assim sendo, a questão com a qual iniciei este pequeno ensaio deve ser reformulada. Melhor seria: por que a filosofia no Brasil ficou confinada a clubes de comentaristas profissionais, nos quais pouco se pensa e se privilegia o retorno às tradições ou a reescrever filosofias do passado? Por que adotamos o olhar colonialista e nos apoucamos tanto a ponto de julgar que nunca teremos filósofos com ideias próprias, capazes de influenciar a ágora internacional como Dennett, Agamben e outros pensadores contemporâneos? Por que isso não acontece?

Murilo Seabra chama a atenção para o tipo de formação que os estudantes de filosofia recebem nos nossos departamentos universitários. Nossas graduações em filosofia são máquinas de moer carne. São dispositivos educacionais que, desde o ingresso dos alunos até sua formatura, desestimulam sua curiosidade e suas expectativas. Paradoxalmente, a reflexão não é bem-vinda nos nossos cursos de filosofia, pois, antes de mais nada, os estudantes devem aprender como ler e interpretar um texto filosófico. Uma tarefa necessária e louvável. Não fosse pelo fato de que, com exceção de algumas disciplinas, o aluno de graduação não fará outra atividade nos anos seguintes senão a análise de textos. Ou seja, durante os quatro ou cinco anos de graduação o estudante deve se contentar com o aprendizado de história da filosofia e com o desenvolvimento da tecnologia de processamento de textos, preferencialmente de autores franceses ou alemães. A pós-graduação será, provavelmente, “mais do mesmo”.

Nos cursos de filosofia não se estudam questões filosóficas, mas autores, preferencialmente europeus, que devem ser lidos em sua língua original, como se todas as traduções fossem, invariavelmente, de má qualidade. É um quadro estranho, pois até o CNPq costuma atribuir mais pontos para se obter uma bolsa de produtividade em pesquisa quando o candidato inclui, no seu curriculum, a tradução de um texto filosófico clássico. Ou seja, atualmente, nossas traduções são feitas não apenas por conhecedores de uma língua estrangeira, mas por professores que, além de bilíngues, são conhecedores dos filósofos estrangeiros cujos textos eles traduzem.  

Os que sentem em si as chamas do debate são forçados a permanecer na exegese. Na filosofia acadêmica, o debate é, no máximo, confrontação entre autores consagrados e seus comentadores oficiais. Pois, como afirma Murilo Seabra “quando a gente vê um livro de um autor brasileiro, ele geralmente traz o nome de um alemão ou de um francês já no título. Ou então no subtítulo. O contrário nunca acontece”.

O capítulo mais interessante do livro é “Colonialismo cognitivo”, que Seabra assina juntamente com Luke Prendergast. Os autores apresentam um experimento que corrobora a tendência vira-lata que é incutida nos estudantes de filosofia no Brasil. Partindo de uma amostragem oriunda de sete departamentos de filosofia, de várias partes do Brasil, eles apresentam um mesmo texto, inicialmente assinado por um filósofo francês e, num segundo momento, assinado por um filósofo brasileiro. Indagados pelas suas preferências, a maioria escolhe o texto do francês. Tudo se passa como numa degustação cega de vinhos na qual após uma troca sub-reptícia de embalagens, o provador elogia o vinho francês sem perceber que ele foi substituído por um vinho brasileiro.

O pressuposto da direita e da esquerda, mas sobretudo da esquerda, que atualmente predomina nos meios acadêmicos brasileiros, é manter os olhos voltados para o Atlântico Norte. É a oftalmopolítica, a ranhura na retina do brasileiro que leva à distorção das imagens. O resultado é a importação das filosofias, sem perceber que sua tropicalização só produz o que Roberto Schwarz chamou de “ideias fora do lugar”. 

É possível que minhas afirmações levem à falsa conclusão de que menosprezo a importância da história da filosofia. Não afirmo isso. Entendo que não é possível fazer filosofia sem conhecer sua história. No entanto, nos curriculae brasileiros, ela está superestimada. Além disso, ela se tornou, nos dias de hoje, uma escolástica maçante. No século XIX, Augusto Comte queria substituir os santos católicos por cientistas. No Brasil, os departamentos de filosofia querem substituir os santos católicos pelos filósofos clássicos. 

Que podemos fazer diante desse “imbróglio”? Precisamos discutir essas questões abertamente. Baixar a autocensura que as torna um tabu na comunidade filosófica brasileira. O tabu que faz com que todos desconversem quando se toca nesses assuntos.

Caso contrário, só nos resta aceitar as acusações de frivolidade e de irrelevância que pairam sobre nossas cabeças.