Organizar, ocupar e resistir! O ‘lugar’ da reflexão filosófica no protagonismo dos/as estudantes-jovens paranaenses

Ademir Aparecido Pinhelli Mendes

NESEF-UFPR

Edson Rezende Teixeira

NESEF-UFPR

Geraldo Balduíno Horn

NESEF-UFPR

Valéria Arias

NESEF-UFPR

28/10/2016 • Coluna ANPOF

O movimento de resistência protagonizado pelos/as estudantes-jovens paranaenses pode ser considerado um acontecimento único e de grande relevância para a história dos movimentos sociais ocidentais das últimas décadas. Nos anos de 1960 e 1970, o movimento estudantil universitário, mais especificamente, o levante de maio de 1968, impulsionado pelas manifestações iniciadas na Europa, especialmente na França, constitui-se, sem dúvida, em um importante espaço de resistência aos modelos ditatoriais de diferentes matizes políticas, no caso brasileiro a luta contra os ditames do regime civil-militar (1964-1985). A organização do movimento estudantil por meio dos DCEs (Diretórios Centrais Estudantis), das UEEs (Uniões Estaduais dos Estudantes), da UNE (União Nacional dos Estudantes) e dos Grêmios Estudantis das Escolas de EnsinoFundamental e Médio com suas reivindicações específicas, protestos e manifestações políticas, influenciaram sobre maneira os rumos da política nacional brasileira.

A grande mídia, como não é de estranhar, tem se posicionado contra o movimento estudantil que vem crescendo rapidamente em todas as regiões do Estado do Paraná e nos últimos dias também em outros estados brasileiros (mais de 1000 escolas ocupadas). Movimento que também se alastrou no Ensino Superior com ocupações de 731 Universidades em todo país. Por quê? O que o ensino da Filosofia, especialmente no Paraná, tem a ver com isso?



Os motivos do movimento dos estudantes são conhecidos por todos nós: MP (Medida Provisória) 746, PEC (Projeto de Emenda Constitucional) 241, PLC 257 (Projeto de Lei Complementar) e toda a política econômica e, alegadamente, social do governo Temer. E a Filosofia? Sim, a Filosofia tem, na visão dos estudantes, um importante peso em duplo e, até mesmo, paradoxal sentido. Por um lado, ela representa uma das mais recentes conquistas do currículo: em 2006, de forma pioneira no Brasil, no Estado do Paraná foi aprovada lei nº 7.276 de 26 de julho de 2006 tornando a Filosofia e a Sociologia disciplinas obrigatórias em todos os anos do Ensino Médio e em todo território nacional em 2008 com a aprovação da lei 11.684 de 02 de julho de 2008, que alterou o artigo 36 da LDB tornando a Filosofia e a Sociologia disciplinas obrigatórias em todas as séries do Ensino Médio. Por outro lado, no Paraná, a Filosofia rapidamente conquistou legitimidade no “chão da escola” na medida em que seus conteúdos passaram ser reconhecidos pelos estudantes como centrais para sua formação humana e critica.

Bem diferente do que ocorre na maioria das escolas brasileiras, a Filosofia como disciplina curricular do ensino médio, conta com duas aulas semanais em todas as escolas públicas de ensino médio do Estado do Paraná. O mesmo ocorre com Sociologia, Arte e Educação.

Pode-se dizer que esse foi o resultado de exaustivas discussões, embates e atuações dos profissionais da educação do Estado do Paraná, ocorridos entre os anos 2003 e 2010 e que, até o momento, o atual governo (no seu segundo mandato) não logrou êxito em aniquilar. As tentativas governamentais com esse objetivo foram diversas, porém contaram com a resistência organizada dos movimentos sociais em defesa da educação pública.

O histórico do avanço nas pautas educacionais no Paraná tem início no ano de 2003, quando os profissionais da educação das escolas públicas de ensino médio foram chamados pela Secretaria de Educação local (SEED) para discutir o currículo escolar com apoio de pesquisadores das universidades estaduais e federais presentes no Estado. A construção foi longa e democraticamente debatida. Foram realizados inúmeros simpósios, encontros, seminários, eventos de formação continuada, discussões nas escolas nas semanas pedagógicas, grupos de estudos etc., para que, no final de 2008, a secretaria de Educação do Estado do Paraná pudesse publicar um

documento que ficou conhecido como Diretrizes Curriculares da Educação Básica do Estado do Paraná (DCEs PR).

Nesse documento, está registrada a compreensão consensual de que o currículo escolar deve ser organizado por disciplinas. Pois, os coletivos entenderam que cada disciplina tem sua história, epistemologia, objeto de estudo e metodologia de ensino. Houve, também, o entendimento de que nenhuma disciplina pode estar na matriz curricular com menos de duas aulas semanais, partindo-se do princípio que esse tempo é o mínimo necessário para possibilitar o trabalho pedagógico efetivo.

No caso da Filosofia, foram definidos seis conteúdos estruturantes do currículo escolar: Mito e Filosofia; Teoria do Conhecimento; Filosofia da Ciência; Ética; Política; Estética. Essas diretrizes orientam a forma como os professores de Filosofia organizam, em seus planos de trabalho docente, os conteúdos (e respectivas metodologias) que serão trabalhados nos três, ou quatro, anos do Ensino Médio2 e, igualmente, reafirmam a relação do trabalho pedagógico de cada docente com os objetivos traçados nas propostas pedagógicas curriculares singulares das escolas.

Com um dos suportes a esse trabalho foram produzidos e editados livros didáticos para as 12 disciplinas de tradição curricular, denominado Livro Didático Público, os quais foram distribuídos gratuitamente ao estudantado paranaense em 2007 e 2008. Nos anos seguintes, a Filosofia entrou no PNLD Federal (Programa Nacional do Livro Didático), cujas obras, distribuídas ao conjunto das escolas brasileiras, são, não manuais exclusivos, mas alternativas didático-pedagógicas auxiliares à docência da disciplina.

Já, do ponto de vista da valorização e qualificação docente, foram realizados concursos públicos para contratação de professores com formação específica em Filosofia; implementados programas de formação continuada dos professores, bem como, efetivaram-se, mediante Lei Estadual, o Plano de Cargos, Carreira e Salários para os/as professores/as e o aumento do tempo da hora-atividade, equivalente a 35% do total de carga horária dedicada à docência. Todas essas ações evidenciam que, desde aquela década, houve uma política pública educacional com a finalidade de melhorar as condições de ensino e aprendizagem, optando-se por um currículo do Ensino Médio organizado a partir das 12 disciplinas de tradição curricular.

Ao observar as escolas ocupadas por estudantes do Ensino Médio no Estado do Paraná, podemos nos perguntar: se essa escola é tão ruim e inadequada como querem fazer entender a mídia e o governo (golpista) de Michel Temer, então o que levaria os estudantes a defendê-la no momento em que sentem que essa mesma educação está ameaçada pela MP 746? O que de fato os estudantes temem?

Os jovens temem o que muitos de nós (professores, pais, gestores...) tememos, mas, por vezes, não temos nem disposição e nem energia suficiente para participar de ações e movimentos que expressem politicamente tal temor e contrariedade. Nesse sentido o lema: organizar, ocupar e resistir vem se configurando como uma nova forma, agora urbana e cosmopolita, de contestação e insurgirmento. Os recentes movimentos de ocupação em São Paulo e no Rio de Janeiro são exemplos do potencial reivindicativo e de resistência às políticas impositivas e discriminatórias dos respectivos governos locais. Assim como muitos de nós, os/as jovens sabem que “está em curso, no cenário atual brasileiro, uma disputa de projeto de sociedade: dos que defendem a democracia, o estado de direito e o direito subjetivo como condição sine qua non de uma sociedade mais justa em todas as dimensões da vida humana (econômica, social, cultural...) e daqueles que defendem o modelo meritocrático, do apartheid social, da manutenção de privilégios e, no caso da reforma em pauta, de uma ‘nova-velha’ concepção de escolarização e currículo que toma a “flexibilização” como fachada justificadora de intenções escusas e ocultas, aparentemente benéficas às atuais necessidades e demandas da educação escolar” (HORN, ARIAS et. all.).

Mais especificamente, poder-se-ia perguntar qual é, no protagonismo dos/as estudantes, o ‘lugar’ da reflexão filosófica? Melhor dizendo, os/as estudantes reconhecem a contribuição da disciplina de Filosofia para sua formação a ponto de lutar por sua permanência no currículo? Como a resposta a essa última questão, partindo das falas publicizadas pelo movimento estudantil é um sim, cabe tentar deslindar mais profundamente as razões e o alcance social dessa percepção.

A Filosofia, como disciplina do Ensino Médio, de modo especial, tem visado a realização do exercício de filosofar, assim entendido como ato teórico-prático ancorado, sobretudo, na crítica qualificada do presente. Assim sendo, muito além de uma troca de ‘expertises entre expertos’, como ocorre comumente na Filosofia dita especializada, circunscrita aos âmbitos acadêmicos, a Filosofia como disciplina escolar tem laços estreitos com a ágora, com a pólis, enfim com o espaço público, palco real dos problemas e dilemas humanos. Essa perspectiva em nada se relaciona com a ratificação do senso comum, ao contrário, supera-o. Mais: essa perspectiva é essencialmente dialética ao apropriar-se da tradição filosófica não tão somente como ornamento erudito ou como retransmissão de conteúdos datados. Nela o conhecimento filosófico se afirma enquanto arcabouço de conteúdos historicamente produzidos e que fornecem suporte e substrato para o entendimento e a superação de atitudes, sentimentos e valores naturalizados no, assim chamado, senso comum forjado pela própria lógica societária. É esta lógica, eivada de interesses e simulacros que sistemicamente trava e/ou desconfigura os processos e iniciativas de emancipação humana, muitos deles levados a cabo por personalidades identificadas no seio da cultura ocidental como filósofos e filósofas e cujos pensamentos, muitas das vezes são repetidos e citados sem a devida compreensão que se tratavam não de ‘pensamentos alheios ao mundo’, mas de exercícios teórico-práticos a partir de problematizações de situações concretas.

Nesse sentido, a disciplina de Filosofia se amplia e se coloca como Educação Filosófica, que, a partir da sala de aula, da realidade vivida pelos/as jovens e adultos/as da Educação Básica, ganha o espaço público e, muito por isso, constitui-se em conjunto de conhecimentos que, a cada dia mais, têm feito sentido ético, político e pedagógico para esses/as estudantes.

Os vídeos, depoimentos e demais conteúdos veiculados pelos/as estudantes nas redes sociais evidenciam que eles/as reconhecem nas aulas de Filosofia elementos que foram capazes de orientar suas reflexões enquanto sujeitos dos problemas e dos dilemas da vida cotidiana e, ao propiciar essa tomada de consciência, fê-los/as perceberem-se a si mesmos/as como parte dos contextos mais amplos. Importante ressaltar que a politização dos/as jovens, tão demonizada pelas mídias tradicionais e pela ‘ordem’ burguesa que se arroga definitiva, muito embora não seja, isoladamente, o objetivo da Filosofia como disciplina escolar, é, em certo sentido, a ela inextricavelmente ligada. Com efeito, a compreensão ampliada dos sentidos da política, da ética, da estética, da ciência, das teorias do conhecimento, enfim, dos conteúdos e reflexões da tradição filosófica ocidental, constitui-se em mediação para o processo de superação do patamar da doxa e para a construção paulatina da reflexão e do posicionamento autônomos.

Nesta perspectiva, os estudantes de escolas ocupadas, compreendem que a retirada da obrigatoriedade da Filosofia, da Sociologia, principalmente, mas também, da Educação Física e da Arte, imposta pela MP 746, incidem numa tentativa de usurpação e descaracterização dos comedidos avanços educacionais que, a duras penas, os movimentos sociais em defesa da educação conseguiram implementar. A própria defesa corrente no âmbito governamental segundo a qual “estudantes mobilizados são massa de manobra” reforça, para eles/as, a perspectiva da intencionalidade retrógrada e não confiável da proposta de Reforma do Ensino Médio. Mais que simplesmente ler e entender o texto da MP e da Portaria3 que a regulamenta, os estudantes a relacionam com as demais medidas que reduzem drasticamente o tamanho do Estado Social e, ao mesmo tempo, adicionam recursos socialmente produzidos aos cofres dos rentistas e das grandes corporações.

Ao se posicionarem sobre a estrutura curricular constante na MP no que concerne à descaracterização das disciplinas de Filosofia e Sociologia, os estudantes afirmam, por exemplo, que tais conteúdos os levam “a refletir sobre a lógica de organização da sociedade” e a “tomar posição em defesa das novas gerações”4.

Eis que, nos depoimentos estudantis, pode-se divisar o principal motivo da luta de resistência que eles/as travam: lutam por um interesse coletivo, social e, sim, as reflexões filosóficas e sociológicas têm uma contribuição nessa compreensão, pois, conforme sintetiza um estudante, “a filosofia nos mostra um mundo diferente, quando os conceitos apresentados contribuem para pensar e se posicionar de outra forma, que não simplesmente fazer o que os outros desejam. A filosofia nos ajuda a construir objetivos e a tentar construir uma coletividade”5.

Outra evidência das contribuições das reflexões filosófica e sociológica no âmbito escolar, que não são patrimônios exclusivos das aulas dessas disciplinas, mas é mediante elas que são tratadas da forma sistematizada e qualificada que merecem e exigem, é o amadurecimento do debate estudantil. São os/as próprios/as estudantes em ocupações que reiteradamente dizem à sociedade o quanto é importante refletir e debater sobre as medidas governamentais, antes de simplesmente, repetir o que as mídias tradicionais veiculam. “A mídia está dizendo que os alunos estão no colégio para badernar, não sabem o motivo porque estão nas ocupações, não querem ter aula, mas nós estamos fazendo várias atividades no espaço escolar, arrumando coisas e realizando oficinas”6.

O relato a seguir é particularmente esclarecedor: “Quando assumimos a ocupação, foi por uma causa: para que escola evolua e não volte atrás, mas, com o passar dos dias, fomos percebendo, na real mesmo, que todos os conteúdos que a gente estudou na Filosofia, na Sociologia e no Direito, não são só textos, só palavras. A gente comenta entre nós que os conteúdos dos textos ocorrem, são visíveis, na sociedade. Os que estão contra nós não dialogam, só nos desqualificam; a gente tenta mostrar que nossa causa é justa e que é por eles que lutamos e, por isso, porque entendemos bem a coisa toda, resistimos”7. Essa fala demonstra uma conexão inelutável entre a produção teórica da Filosofia, da Sociologia e, nesse caso específico, do Direito, socializadas pela educação escolar nos moldes atuais ? cujos motes incidentais das autorias não foram outros, senão problemas e dilemas humanos e, portanto, sociais ? e a compreensão do presente vivido. Essa conexão expressa a atitude filosófica dos/as jovens como um dos fundamentos do seu protagonismo no movimento de ocupação. Ela indica, mediante atitudes autoconscientes, dentro de certos limites marcados pelo seu próprio processo de evolução intelectual, que parte significativa da juventude logra avançar a patamares superiores de entendimento e percebe os nexos entre os carecimentos presentes, vivenciados cotidianamente, e as estruturas mais amplas aos quais esses carecimentos estão relacionados. Noutros termos, caminha-se do local, individual, ao global e coletivo e destes últimos novamente aos primeiros; ora, esse processo não é outro senão, ético-político, pois da percepção dialética do movimento societário e do necessário comprometimento com as causas entendidas como justas e válidas para toda a sociedade, advém os motivos que levaram à Primavera Secundarista.

A juventude paranaense da escola pública tem demonstrado que a Filosofia, as demais Humanidades e os, repetimos, ainda tímidos avanços na política pública educacional paranaense têm seu lugar no quadro de motivações legítimas desse fenômeno político importante e grandioso. Os/as “secundas”, conforme são popularmente chamados/as, valorizam cada conquista social alcançada e, em nome delas, tomaram para si a responsabilidade pela insurgência contra as medidas governamentais que não os/as consideram o que de fato tornaram-se, sujeitos de direitos e capazes de elaborar críticas contundentes ao contexto político.

A ampliação e a qualificação do espaço curricular da Filosofia na educação básica paranaense têm ‘tudo a ver’ com esse movimento ao mesmo tempo, pedagógico e insurgente: ela identifica-se com a luta dos estudantes pois, também sua presença na escola é resultado de lutas e embates. Ora, a Filosofia, representada pelos/as professores de Filosofia da Educação Básica, organizados e identificados, em sua maioria, à intelectualidade pública, lutou e luta; ocupou seu lugar na escola e vem se interpondo às ameaças que pesam contra esse locus conquistado; segue, enquanto conhecimento que se faz autêntico e específico, mediante a difusão da reflexão rigorosa, da leitura atenta, da crítica profunda, da racionalidade humanizada, do comprometimento com a função social da escola pública, resistindo ao assalto aos direitos sociais perpetrado pelos atuais mandatários do Brasil.

Notas

1 Dados atualizados em 26/10/2016, data em que se registrava várias Universidades e Campi em processo de ocupação.

2 O Ensino Médio com duração de 4 anos diz respeito à modalidade Educação Profissional Integrada à oferta propedêutica.

3 Referimo-nos à Portaria Federal 1.145 de 10 de setembro de 2016 que institui o Programa de Fomento à Implementação de Escolas em Tempo Integral, criada pela Medida Provisória no 746, de 22 de setembro de 2016.

4 Depoimento de liderança estudantil da “Ocupa Otília” em Pinhais – PR.

5 Depoimento de liderança estudantil da “Ocupa Amyntas” em Pinhais – PR.

6 Depoimento de liderança estudantil da “Ocupa Matias” do Município de Pinhais.

7 Liderança feminina da “Ocupa Lamenha Lins” em Curitiba - PR, cursando Técnico em Administração. Fonte: Vídeo produzido pelos estudantes da referida ocupação.

Referências

ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Tradução de Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

HORN, Geraldo Balduíno. Ensinar Filosofia: Pressupostos teóricos e Metodológicos. Ijuí: UNIJUÍ, 2009.

HORN, Geraldo Balduíno; ARIAS, Valéria, MENDES; Ademir Pinhelli; VALES, Rui. Notas para a análise da MP 764/2016. Curitiba: 2016, Versão online-pdf

28 de Outubro de 2016