PAUTAS IDENTITÁRIAS, IGNORÂNCIA BRANCA E O DIABO MORA NOS DETALHES

06/10/2020 • Coluna ANPOF

Rogério Saucedo Corrêa 1

 Em "A importância das questões identitárias", Érico Andrade responde ao texto "Irracionalismos identitários", de Rogério Severo. Este reclama que a discussão atual sobre questões identitárias incorre em duas bizarrices decorrentes da mudança do significado antigo para o significado novo da palavra “racismo”. O antigo é aquele que todos nós entendemos, usamos e que está tanto nos dicionários quanto na Constituição da República Federativa do Brasil. O novo é o conceito descritivo de racismo epistêmico.

Por um lado, essa mudança implica um irracionalismo, pois, dado o significado descritivo, alguém como Martin Luther King, que era um antirracista, nos dias de hoje poderia ser considerado um racista, uma vez que em seu famoso discurso ele pede que os afro-americanos sejam julgados pelo seu caráter e não pela cor de sua pele. Por outro lado, a sobreposição dos dois significados de racismo implica em uma postura semirreligiosa. Se sobreponho o conceito descritivo ao normativo e condeno moralmente todo e qualquer indivíduo, ainda que ele não tenha cometido nenhum ato ou defendido qualquer crença moralmente condenável, cometo um erro inferencial, pois parto de um conceito descritivo para outro normativo. O exemplo paradigmático desse erro é Djamila Ribeiro. A postura é semirreligiosa, porque, dado o erro inferencial, sou levado a considerar toda e qualquer pessoa que nasce em uma sociedade estruturalmente racista como herdeira de um pecado original, o racismo.

Em resposta a Severo, Andrade identifica, e do meu ponto de vista corretamente, dois pressupostos gerais no texto daquele. A ideia equivocada de que a ciência tem o monopólio da racionalidade e a ideia equivocada de que a variação de significado de palavras seja um problema. Como contraexemplos basta pensarmos nas tradições indígenas e no surgimento das palavras “mulato” e “pardo” no léxico do português brasileiro. É ingenuidade pensarmos que os indígenas necessitariam da ciência para decidirem o nome de um novo líder. Além disso, as palavras “mulato” e “pardo” surgiram no Brasil escravagista para distinguir os mestiços com direitos dos mestiços sem direitos.

O último exemplo acima é interessante, pois serve para mostrar duas coisas. Primeiro, que o significado depreciativo da palavra “mulato” não é a mesmo de quando ela surgiu, uma vez que a palavra não está mais associada aos mestiços sem direitos. Segundo, que a descoberta desta mudança de significado remete a um ponto importante do texto de Severo. Sabemos que “mulato” e “pardo” surgiram com diferentes significados no Brasil escravagista graças às pesquisas dos historiadores a partir das atas das sentenças lavradas no período escravagista. Aqui, portanto, surge o ponto sobre a falta de evidências empíricas nos textos dos filósofos que discutem questões raciais, como é o caso de Djamila.

Darei crédito à reclamação de falta de evidência empírica e considerarei o que a biologia evolutiva e as pesquisas empíricas brasileiras têm para nos oferecerem sobre a questão racial. No primeiro caso, nem necessito de muito esforço, pois basta remeter o leitor ao segundo capítulo do livro “Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura”, de Kuwame Appiah. Neste capítulo, Appiah formula o argumento da incompatibilidade. Segundo ele, as pesquisas genéticas desenvolvidas por biólogos evolucionistas mostraram que a variação genética entre populações é tão insignificante que é impossível dizermos que existem diferenças significativas entre um italiano típico e um senegalês típico. Além disso, elas também mostraram que a variação genética intra africanos é maior que a variação genética entre italianos e senegaleses. Logo, não podemos dizer que existem raças. Como não existe no mundo nada que corresponda aos termos raciais, o correto é pararmos de usá-los. Isso implica em acabar com o racismo? Não. E, novamente, Appiah é alguém que sabe muito bem disso ao caracterizar os racismos intrínseco e extrínseco. O racista intrínseco distingue moralmente os membros de uma raça porque crê que a essência racial implica em qualidades morais relevantes. O racista extrínseco distingue moralmente as pessoas de uma raça porque crê que as raças possuem características raciais próprias. Desse modo, diante de evidências contrárias, como as evidências fornecidas pelos estudos da biologia evolutiva, um e outro podem ser caracterizados de diferentes maneiras, caso finquem pé em suas posições. O primeiro como tendo uma deficiência cognitiva, pois não muda de posição diante de evidências contrárias. O segundo como alguém que comete um erro moral, pois julga moralmente com base em pressupostos falsos.

Agora, menciono uma pesquisa relevante para a compreensão do racismo estrutural brasileiro. Antes, porém, é importante dizer que a inferência indevida é um erro lógico independentemente de quem o cometa, assim como é um erro derivar uma norma de conduta geral ambígua a partir da constatação de um erro inferencial. Não é porque Djamila comete um erro inferencial que ela deve parar de fazer o que faz, pois aquilo que ela faz é muito mais amplo do que simplesmente cometer erros inferenciais. Ela poderia, caso decidisse assim, corrigir seu erro inferencial e passar a analisar caso a caso, oferecendo evidências empíricas sempre que possível. Aqui, a reclamação de Severo sobre a falta de evidências empíricas também é ambígua. Ela pode soar como uma cobrança que seus pares façam pesquisas empíricas ou como uma cobrança para que seus pares levem em consideração pesquisas empíricas. Creio que seja nesta segunda acepção da palavra que Severo esteja mirando, pois a primeira diz respeito aos cientistas políticos e aos antropólogos. Se for, ele não deixa de ter um pouco de razão, pois raramente filósofos levam em consideração pesquisas empíricas, mas isso, penso, tem relação com a natureza do trabalho filosófico. A filosofia da raça não é uma exceção à regra geral, ainda que um contraexemplo seja o livro de Appiah mencionado acima. No Brasil uma pesquisa que mapeia a realidade do racismo estrutural e que pode ajudar na compreensão e análise por parte de filósofos é o “Relatório das desigualdades: raça gênero classe”, do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA).

Consideremos o gráfico sobre a distribuição racial por categoria Sócio Ocupacional em 2016, que possui onze indicadores. Vejamos o que os indicadores de Profissões e Administrações de Nível Alto e Trabalhos Manuais Qualificados dizem respectivamente. O primeiro diz que 11,5% destas profissões são desenvolvidas por brancos, seguido de 4,2% por pardos e 3,4% por negros. O segundo, diz que 28,6% são desenvolvidos por pardos, seguido por 29,8% por negros e 23,0% por brancos. O gráfico sobre Média da Renda Domiciliar Per Capita por Raça/Cor e Classe Social em 2016 mostra que a maioria dos que ganham acima de três mil reais são brancos, seguidode pardos e negros abaixo de dois mil e quinhentos reais. Consideremos o gráfico sobre Desemprego por Raça/Cor entre 2011 e 2016. O percentual de desemprego para brancos é de 9% enquanto para pardos e negros é de 13%. Não é necessário, portanto, mencionar cada um dos quatorze gráficos do referido estudo, pois basta lermos a segunda linha da sua conclusão para sabermos que não brancos sempre estão em desvantagem em relação a brancos. Segundo a conclusão, “Em todas as mensurações, observamos significativas vantagens dos brancos com relação aos não brancos, haja vista que os resultados de pretos e pardos são muito semelhantes. As disparidades aqui expostas mostram, em grande medida, uma certa melhora das desigualdades de classe e de gênero, mas uma pequena piora das desigualdades entre os grupos raciais” (p. 18). Se isso não serve como evidência empírica para concluirmos que a sociedade brasileira é estruturalmente racista, então que se mostrem pesquisas em contrário.

Por último, penso que o espírito geral do texto de Severo enquadra-se muito bem em um dos aspectos destacados por Charles Mills em “Ignorância Branca”. Se isso é correto, então o texto pode induzir a uma conclusão indesejável. Ao analisar a percepção, Mills relaciona-a com a categoria de normatividade branca e com a mudança do racismo antigo para o racismo novo. No racismo antigo, a diferenciação entre negros e brancos dava-se pela cor da pele e permitia aos brancos alegarem a seu favor uma diferença e superioridade biológica. No racismo novo, os não brancos são assimilados como iguais aos brancos em função de uma “color blindness”. Consequentemente, as reivindicações dos negros são consideradas racistas, uma vez que eles insistem em falar sobre raça. Por isso, Djamila e Silvio Almeida, por exemplo, devem parar de falar e de fazer o que fazem, pois eles são racistas. Não é a estrutura do estado brasileiro, a qual impede o acesso de negros às Universidades ou aos empregos do primeiro escalão, que é racista, mas são vocês, intelectuais negros militantes, que são racistas. Não são os torcedores do Grêmio que chamaram o goleiro Aranha de macaco que são racistas, nem a polícia brasileira que tem na sua conta total de mortes o absurdo percentual de 75% demortes de negros, segundo o “Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019”. Somos, portanto, todos iguais. Só não vê quem não quer.

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(1) Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFPE e membro do NEAB-UFPE.