Por uma disciplina para estudar o pensamento ameríndio nos cursos de filosofia

Filipe Ceppas

Professor adjunto da UFRJ - FE / PPGF

06/02/2017 • Coluna ANPOF

A proposta de incluir, no currículo da graduação em filosofia, uma disciplina obrigatória dedicada à filosofia e as culturas ameríndias responde a uma série de questões que vêm se revelando cada dia mais evidentes e importantes, começando com a do sentido de se falar em uma “filosofia indígena”. Essa proposta atende à exigência, sempre renovada, de situar nosso fazer filosófico; não o fazer filosófico como um todo, mas aqueles âmbitos da produção filosófica diretamente implicados no diálogo com a nossa história e as especificidades de nossa cultura. Não se trata de uma “perspectiva aplicada” ou “nacionalista”, no sentido do compromisso, que teria o exercício da filosofia entre nós, com pensar “os problemas brasileiros”, ainda que esta também possa ser uma perspectiva interessante e conjugada de trabalho. Trata-se, antes de mais nada, de demandas já há muito explicitadas em meio ao exercício filosófico de modo geral.

A primeira demanda advém da própria história da filosofia “européia”. Como Oswald de Andrade especulou em seu Manifesto antropófago (e Afonso Arinos de Melo Franco o demonstrou, em livro eruditíssimo, publicado em 1937, O índio brasileiro e a revolução francesa. As origens brasileiras da bondade natural): “Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.” A importância do “encontro” entre europeus e ameríndios para o desenvolvimento da filosofia ocidental é uma questão já clássica, que vem se complexificando desde os Ensaios de Montaigne (questão que pode ser vista, ainda, como desdobramento de outra, mais antiga, e não somente grega, de um sempre renovado conflito entre nós e os outros, os “bárbaros”).

Mas é com o crescente diálogo entre filosofia e antropologia, do final do século XIX para cá, que se adensa o interesse pelas culturas ameríndias, pelos seus pensamentos, mitos e ritos, interesse que pode ser dividido em duas dimensões interligadas. De um lado, a filosofia social e política — frente aos trabalhos de Malinovski, Mauss, Lévi-Strauss, Pierre Clastres, etc. e às análises dos princípios da organização social, econômica e política dos indígenas — se vê desafiada a reavaliar a universalidade dos conceitos utilizados para teorizar sobre a coesão social dos agrupamentos humanos, como contrato, esferas pública e privada, poder, dominação, troca, reciprocidade, etc. De outro lado, abandonada a crença equivocada de que os indígenas viveriam numa espécie de estágio “primitivo” (no sentido de “primevo” ou “atrasado”), que seria como que o passado das sociedades “mais evoluídas”, à filosofia importa confrontar, em suas investigações metafísicas, ontologias e racionalidades aparentemente distintas. Aqui, novamente, Lévi-Strauss (inspirando-se em Rousseau) abriu o caminho, ao questionar de modo radical o pressuposto de uma “maior razoabilidade” dos esquemas conceituais e princípios de racionalidade da ciência e da filosofia ocidentais. Filósofos “pós-estruturalistas”, como Lyotard, Deleuze e Derrida, também avançaram neste debate. Entre nós, Viveiros de Castro vem produzindo uma obra cujas implicações-provocações metafísicas dificilmente podem ser ignoradas.

A importância pedagógica desses debates para a formação dos futuros filósofos e professores de filosofia é imensa. Começa, por exemplo, por nos convidar a novas abordagens de introdução ao clássico tema do “nascimento da filosofia”, no embate entre mito e lógos. Entram aqui alguns “terceiros termos”, que são os mitos, rituais e pensamentos indígenas (Lévi-Strauss, mais uma vez, desenvolveu importantes comparações entre mitos gregos e indígenas). No outro extremo, a referência às culturas indígenas esbarra também em questões relativas ao desenvolvimento e à preservação da natureza, ao esgotamento dos recursos naturais e formas alternativas de produção e consumo, à biopolítica e ao corpo como uma máquina em contínuos processos de transformações e canibalizações (enxertos, inseminações, etc).

Esses debates, ademais, nos convidam a revisitar alguns autores brasileiros fundamentais, como Oswald de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda (autor de Visões do paraíso, livro indispensável acerca das relações entre colonizadores europeus e os indígenas brasileiros), Afonso Arinos, etc, ampliando a cultura geral por vezes aligeirada de licenciandos e bacharéis, que frequentemente terminam seus cursos universitários sem terem lido uma linha sequer de alguns dos principais pensadores brasileiros, incluindo obras de nossos próprios filósofos antecessores mais recentes, como Gerd Bornheim (que escreveu excelentes textos sobre o tema, de “O bom selvagem como philosophe e a invenção do mundo sensível” a “O conceito de descobrimento”), Eudoro de Souza, Vilém Flusser, etc. Neste sentido, seria preciso mencionar, ainda, a possibilidade de um diálogo, hoje praticamente inexistente, entre nossa produção filosófica e a produção filosófica na América Latina, a começar pelo conhecimento de clássicos como José Martí, José Carlos Mariatégui ou Leopoldo Zea, autores que atentaram para a importância das culturas ameríndias na produção filosófica latinoamericana.

Por fim, e voltando à questão inicial, da existência ou não de uma “filosofia indígena”, será extremamente auspicioso ampliar o espaço, na universidade, para a afirmação dos pensamentos dos diversos povos ameríndios (que muitas vezes, e por boas razões, recusam a própria designação de “indígenas”) narrados por eles próprios; um espaço para leitura e investigação de textos como os de Davi Kopenawa (A queda do céu, Cia das Letras), por exemplo; espaço que guaranis, xavantes, krenaks e tantos outros possam um dia ocupar como professores, encontrando acolhida para nele realizar o difícil exercício de diálogo com as nossas elocubrações filosófico-antropológicas acerca deles. 

 

ANPOF (biênio 2017-2018)

06 de Fevereiro de 2017