Vinte e cinco anos sem Cioran

23/07/2020 • Coluna ANPOF

Alfons C. Salellas Bosch 1

Cumprem-se em 2020 os vinte e cinco anos da morte do filósofo romeno Emil Cioran. Nascido em R??inari em 1911 e radicado em Paris desde 1937, Cioran foi autor de cinco obras em língua romena e outras dez em francês, que representam uma viagem intelectual que parte de um niilismo vitalista, influenciado por Schopenhauer, Chestov e a filosofia da história de Oswald Spengler, e chega a um ceticismo temperado à la Montaigne. Filho de um sacerdote ortodoxo rural, cursou estudos de filosofia na Universidade de Bucarest, na qual graduou-se com um trabalho sobre Bergson em 1932. Em 1934 publicou seu primeiro livro, Pe culmile desper?rii (Nos cumes do desespero). Três anos mais tarde, conseguiu uma bolsa do Instituto Francês e se trasladou a Paris. Em 1946, no mesmo ano em que renuncia à nacionalidade e se declara apátrida, o regime comunista romeno interdita sua volta ao país e proíbe os seus livros. Autor de culto, reivindicado por escritores e pensadores iconoclastas, Cioran, através do paradoxo e da autoironia, cultivou um pensamento assistemático e fragmentário na forma de aforismos lúcidos e ensaios provocadores, que registram e se defrontam com o absurdo da condição humana.

Num olhar superficial, pode-se chegar a acreditar que Cioran foi o autor de um livro só e que seus títulos não fizeram outra coisa do que se repetir uma e outra vez, mas mesmo sendo certo que suas obsessões sempre foram as mesmas – dizia que não tinha ideias, mas obsessões –, há uma diferença substancial entre o lirismo desmedido do seu período romeno e a contenção posterior da etapa francesa, a partir de dois fatos cruciais: o final da Segunda Guerra Mundial e o reconhecimento dos seus excessos de juventude, por um lado, e a mudança de idioma para o francês, que o autor vivenciou como a incorporação de uma camisa de força, por outro. Essa transformação se expressa filosoficamente como o passo do irracionalismo romântico e o vitalismo dos inícios ao ceticismo desenganado da sua maturidade: “sou um cético – afirmava – que vez por outra é seduzido por alguma outra coisa que a dúvida”.

Testemunha da sua cegueira juvenil, em 1936 publicou-se Schimbarea la fa?? a României (A transfiguração da Romênia), livro que Cioran, muito mais tarde, permitiu a tradução ao francês só depois de retirar as partes que ele achava especialmente exacerbadas, “pretensiosas e estúpidas”. Nele, o autor adere às ideias reacionárias da Guarda de Ferro, partido fascista que existiu entre 1927 e a Segunda Guerra. A este texto, devem-se somar os artigos escritos desde a Alemanha nos inícios dos anos trinta, que podem ser lidos em francês, agrupados sob o título significativo de Apologie de la barbárie.

Uma das divisas cioranianas mais importantes, e que, por sinal, encontra-se às antípodas de qualquer pensamento fascista, é o “pensar contra si mesmo”, exercitar- se em não dar nunca por absolutamente válido aquilo que pensamos e naquilo que cremos. Muito além do caso que nos ocupa, a publicação de textos renegados pelos seus autores são relevantes na medida em que permitem que conheçamos aquilo contra o qual escreveram e qual foi sua luta interna. Levando isso em conta, se abrimos o seu primeiro livro da etapa francesa, Précis de decomposição (Breviário de decomposição, 1949) e começamos a ler “Genealogia do fanatismo”, sabemos que estamos diante de um Cioran que faz autocrítica: “Em si mesma, toda ideia é neutra ou deveria sê-lo; mas o homem a anima, projeta nela suas chamas e suas demências; impura, transformada em crença, insere-se no tempo, toma a forma de acontecimento: a passagem da lógica à epilepsia está consumada... Assim nascem as ideologias, as doutrinas e as farsas sanguinárias”. Como tantos outros, Cioran fez parte do grupo de intelectuais europeus do século XX que deixaram-se arrastar pelos cantos da sereia fascista. Como poucos, ele deixou mostras evidentes do seu arrependimento disseminadas em livros e cartas que hoje podem ser consultados por aqueles que se interessam pela sua vida e pelo seu pensamento.

Durante os anos sessenta, Cioran publicou uma trilogia de ensaios e aforismos que pode ser vista como uma espécie de “romance negro das origens” – Histoire et utopie (História e utopia, 1960), La chute dans le temps (A queda no tempo, 1964) e Le mauvais démiurge (O infausto demiurgo, 1969) – na qual, baseando-se tanto no pecado original cristão como na mitologia grega, defende a tese do Mal como fundamento ontológico do Homem e o “progresso” como uma visão profana da queda, além de esboçar uma saída fictícia que consistiria na conquista de uma segunda inocência numa pós-história livre da maldição da consciência e a inquietação do conhecimento que, segundo o autor, afastam o ser humano do mundo que o circunda. Já em 1973, com De l’inconvénient d’être né (Do inconveniente de ter nascido), Cioran entra na reta final da sua criação filosófico-literária – e é bom lembrar aqui que toda filosofia é um ato criativo – na qual o filósofo mostra-se muito mais próximo do leitor comum, atenua seu pessimismo recorrente e, confessando-se secretário de suas sensações, se abre à dimensão mais prosaica e quotidiana da vida.

Estamos agora diante de um Cioran distanciado de Nietzsche, ídolo de juventude que não duvida em chamar de “profeta fulgurante”, “demasiado ingênuo”, preferindo as flutuações de um Marco Aurélio, “imperador cansado”, e a companhia de um Chamfort ou La Rochefoucauld, moralistas franceses dos quais, em parte, é 2herdeiro. Por isso não surpreende que Cioran fosse considerado pelo poeta Saint- John Perse como o prosador mais importante da língua francesa desde Paul Valery.

Passou o tempo e aos delírios sobrehumanos de Nietzsche, Cioran opôs a libertação budista, mas principalmente a distância prudente do cético que desautoriza para a condição humana qualquer consolo de tipo metafísico. Além do mais, e na contramão do rótulo de pessimista que sempre carregou, afirmou que “a alegria é a única vitória sobre o mundo” e que “é impossível viver sem esperança alguma”. Porém, se do que se trata é de discutir os males do pessimismo, permito-me a licença de fazer a seguinte pergunta ao leitor: não é verdade que o pessimismo é geralmente desdenhado antes do começo – nem durante nem depois – de qualquer debate sério? O pessimismo não é habitualmente desconsiderado como um estado de ânimo a ser evitado de qualquer maneira, nunca visto como uma opção teórica respeitável? Na filosofia política herdeira do Iluminismo pulsou, e pulsa, um coração otimista nunca verdadeiramente questionado, responsável em grande medida pelos entusiasmos utópicos de toda índole que ceifaram, e continuam ceifando, milhões de vidas tidas como descartáveis. Então, terá chegado a hora de começar a deixar de ter medo aos textos que não prometem massagens ao ego, individual ou coletivo, e nos propõem vertigens à altura daquilo que somos, um animal de instintos desviados provido de consciência?

Apesar de honrosas exceções e a uma correção constante que felizmente vai em aumento, as universidades costumaram obviar a existência de Cioran, detalhe que ele não deixaria de celebrar, mas que para outros pareceu sempre um sintoma claro de que, com demasiada frequência, a filosofia na academia tem mais de académica do que de filosófica. Pelas mesmas razões aduzidas habitualmente – fragmentário, homem de letras, ensaísta, ... – poderia negar-se a condição de filósofo a Epicuro, Epicteto ou a Montaigne, mas em momentos nos quais a reflexão sobre quem somos, que fazemos e onde queremos ir está ficando cada vez mais surreal, revigora enfrentar-se às páginas de um pensador, estilista consumado, com a coragem suficiente para denunciar a paródia que nos tornamos.

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1 Doutor em filosofia pela UFRGS.