Violência Moral

Susana de Castro

UFRJ/PPGF; Presidente da Anpof; Integrante do GT Filosofia e Gênero da Anpof

04/10/2016 • Coluna ANPOF

No debate que antecedeu ao golpe, seus defensores, alegavam que o processo de impeachment em curso no Congresso estava previsto na Constituição, o que lhe emprestaria legalidade, e que a ausência de tanques nas ruas era a prova cabal de que não estávamos sofrendo um golpe de Estado. Hoje, consumada a cassação do mandato da presidenta Dilma Rousseff, o ex-deputado Eduardo Cunha, seu principal agente, assume o que todos sabíamos e denunciávamos desde sempre, que foi, sim, um golpe, e revela o também já sabido, que o vice-presidente Michel Temer participou ativamente da conspiração. Ademais, o hoje presidente, em palestra dirigida a empresários norte-americanos, em Nova York, declara que a deposição se deu porque a presidente se recusou a adotar o projeto de ajuste que o PMDB lhe apresentara. Mais recentemente, o Ministro Ricardo Lewandowski, que, como presidente do STF presidiu a sessão do Senado que decretou a perda de mandato de Dilma Rousseff, afirmou em aula na Faculdade de Direito da USP, onde leciona, que o impeachment foi um “tropeço da democracia”.

Assim, os atores do golpe estão mostrando à luz do dia, que a Constituição foi rasgada pelo Congresso, com a ajuda e o apoio da grande imprensa brasileira. Na verdade, setores majoritários dos três poderes trabalharam em conjunto para derrubar a presidenta, ao custo de uma gravíssima ruptura constitucional. Para quem acompanhou todo o processo, ficara patente que o julgamento no Senado não passava de uma farsa, pois a maioria dos senadores já havia condenado a governante, embora a acusação não tivesse sido capaz de demonstrar que a presidenta havia cometido crime de responsabilidade, a condição constitucional para a legalidade do impeachment. O golpe – afirmou Dilma Rousseff em seu digno e corajoso discurso de defesa no Senado --, foi dado mediante o uso de “retórica jurídica e violência moral”. Não respeitou a soberania popular e de forma absolutamente autoritária, rasgando os votos de 54 milhões de eleitores brasileiros, depôs-se uma governante legitimamente eleita.

Nos dias de hoje, quando as classes dominantes sentem seus privilégios econômicos, políticos e sociais ameaçados, não fazem mais lançar mão de golpes militares, pois utilizam-se de mecanismos supostamente legais para derrubar o governante. Foi assim também em Honduras e no Paraguai. Nosso propósito neste texto é refletir sobre as bases deste autoritarismo. Se nos detivermos na revisão de nossa formação histórica, como país, Nação e Estado, verificaremos a ausência do sentimento nacionalista.

A escravidão, o extermínio das nações indígenas, uma massa trabalhadora formada por mão de obra não especializada, analfabeta, ou semi-analfabeta marcam a formação da sociedade brasileira. A classe dominante, proprietária dos meios de produção e das grandes propriedades de terra vê no trabalhador brasileiro apenas uma mão de obra barata, excedente, não um cidadão compatriota.

A economia extrativista e a ausência de interesse no desenvolvimento de uma imprensa e de universidades no país marcaram de tal forma a sociedade brasileira, que mesmo no Império e na República não foi feito um verdadeiro pacto social. Se no período colonial, a classe dominante era dependente política e economicamente da metrópole portuguesa, no período pós-colonial as elites nacionais não superariam seu sentimento de dependência. Deixamos de ser colônia de exploração, para ser país dependente das economias estrangeiras. A mentalidade da classe dominante permanece a mesma, ou seja, dependente. Nunca houve interesse em fomentar o desenvolvimento do mercado interno. No II Império, tentativas isoladas, como as do Barão de Mauá, eram esmagadas. Posteriormente, políticas desenvolvimentistas como o varguismo e os anos JK foram solapadas com o golpe de 1964. Com a nova República e os governos Lula e Dilma vislumbrou-se a possibilidade de uma retomada dos ideários nacionais-desenvolvimentistas, mas tal qual antes, esse modelo é autoritariamente esmagado. Hoje nossa classe dominante negocia a venda do petróleo do pré-sal a empresas de exploração estrangeiras. Não há entre os membros da classe dominante interesse político em se desenvolver uma dinâmica interna capaz de impulsionar o país para ocupar o mesmo patamar das potências estrangeiras. Durante o governo Lula e Dilma essa situação foi ligeiramente modificada. Neste sentido, buscamos nos unir com outros países emergentes, de que é exemplo a formação dos BRICS, fortalecemos o MERCOSUL, formalizamos tratados comerciais com nossos vizinhos e com países africanos, entre outras medidas.

Sabemos que o poder econômico possui também uma face simbólica. O brasileiro enfrenta um embate psicológico pesado na sua busca pela auto-afirmação. Os meios de comunicação de massa, cumprindo seu papel de aparelhos ideológicos da classe dominante, veiculam sua visão (de classe) distorcida da realidade. Na moda, na teledramaturgia novelas, nos telejornais buscam reproduzir um modelo hegemônico de cultura europeia e norte americana que não reflete os conflitos, dúvidas e anseios de nossa população. Como dizia Paulo Freire, o oprimido precisa se libertar do opressor que vive dentro dele para alcançar sua libertação. Esse opressor entra hoje nas casas através da televisão, do rádio e dos jornais. Chama atenção de todos a forma pela qual a seletividade do judiciário atua, mas no fundo essa seletividade só é possível graças a uma mídia também seletiva. Está aí a raiz da violência moral à qual a presidenta Dilma se referiu em seu discurso no Senado Federal, acima referido, por ocasião da sua defesa.

A feminista negra norte americana, Audre Lorde, alertava no início da década de oitenta para a dificuldade de grande parte dos movimentos sociais e políticos de pensar a igualdade preservando a diferença. Na sua avaliação somos condicionados por um modo de pensar dicotômico, superior-inferior, bom-mal, que nos impede de ver as diversas nuances sob as quais a opressão se dá. Lorde inaugurou a terceira onda do feminismo, introduzindo a noção de diferença, de ‘interceccionalidade’. Esse conceito nos é muito útil para pensar a complexidade do momento presente no Brasil. Dilma não foi deposta apenas porque feriu interesses da classe economicamente dominante, mas também porque seu governo representava uma tentativa de quebra dos privilégios de raça, gênero e sexualidade.

A classe dominante, por seus instrumentos e aparelhos, busca maniqueisticamente culpabilizar um partido e seus dirigentes, como se eles unicamente fossem os responsáveis pela corrupção no Brasil. O discurso moralista da mídia e do Judiciário reflete também o moralismo hipócrita da bancada evangélica do congresso nacional. Jamais esqueceremos a maneira desrespeitosa com a qual evocavam a família e Deus na hora de votar na Câmara dos Deputados a favor da abertura do processo de impeachment. Há quem diga que a referência a Deus e à família era a senha para o pagamento de propina pela FIESP. De qualquer forma, independentemente de ter havido ou não compra de voto, é público e notório que grande parte dos golpistas está envolvida em algum processo. Dos 367 deputados que votaram a favor do impeachment, 215 possuem algum processo na Justiça segundo a ONG Transparência Brasil. Beto Mansur do PRB encabeça a lista com 47 processos; no Senado, dos 55 senadores que aprovaram o afastamento de Dilma, 34 possuem ocorrência na Justiça segundo a mesma ONG; no ministério, quatro ministros são investigados, Mendonça Filho, Eliseu Padilha, Sarney Filho e Geddel Vieira Lima, e três, Romero Jucá, Fabiano Silveira, Henrique Eduardo Alves mal começavam já caíam por envolvimento em tentativa de intimidação, ocultação de provas, e recebimento de propina. ‘Moralistas imorais’, como bem chamou a Carta Capital os corruptos que se arvoram a combater a corrupção. O moralismo maniqueísta da TV, do Judiciário curitibano e da bancada evangélica atende aos anseios da classe media ‘verdeamarelista’ que sem jamais antes ter ido às ruas reivindicar ampliação dos direitos sociais para a população em geral, foi às ruas vestidas com a camisa da seleção brasileira enaltecer o herói Moro, e sua turma de promotores curitibanos, e defender a ditadura e os torturadores. Nas livrarias, o herói Sergio Moro é celebrado em biografias. Constrói-se assim um culto a uma personalidade para que seja possível destruir outra, Lula. O alvo de toda essa investida é um só, impossibilitar a candidatura de Lula para as eleições de 2018. Destruir sua imagem pública.

03 de Outubro de 2016.

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