Crisóstomo e Ricardo Andrade conversam com Antônio Paim sobre Filosofia no Brasil (1)

13/02/2019 • Entrevistas

Crisóstomo - Você tem um vasto trabalho de história do pensamento filosófico no Brasil, não apenas como historiador das ideias mas também como filósofo. Puxando a brasa para minha sardinha, pois esse é o problema que mais me interessa quando me ocupo de pensamento filosófico brasileiro, entendo que você entra naquela história, trata de encontrar aí verdadeiros desenvolvimentos filosóficos, e sai dela com uma proposta filosófica e uma tarefa para filósofos brasileiros: o Culturalismo. Você e o conjunto de pesquisadores do Instituto Brasileiro de Filosofia. É isso? Existe mesmo essa posição? Começando, então, pelo fim, o que é esse Culturalismo, que creio você compartilha com mais representantes do IBF? Quais são as suas teses? Trata-se de um humanismo da pessoa, de um neokantismo (incluindo contribuições hegelianas), de um anti-positivismo (embora amigável à ciência)? E, em termos de filosofia política, trata-se de um liberalismo moderado?

Antônio Paim – Eu sou kantiano. Quer dizer, na verdade o kantismo é uma forma de discutir, é um esquema que a sociedade ocidental encontrou para discutir a cultura, não é? A cultura, do ponto de vista marxista, estaria ligada a luta de classes, determinada pela condição proprietária, o que, como kantiano, não aceito. Mas houve em torno disso, no próprio marxismo, uma disputa de doutrina (que descrevo no meu livro Marxismo e Descendência), sobre esse determinismo, até na Rússia soviética. A discussão começou porque, primeiro, no próprio desenvolvimento da ciência, os russos esbarraram numa porção de problemas que saiam do esquema de “lutas de classe”. O ponto de partida foi um livro do Stalin em que ele examinava a questão da linguística: O marxismo e a questão da linguística. Ele diz nesse livro que a língua e a técnica não são parte da superestrutura classista. Então não há língua de classe, nem técnica de classe. Eu estudava na Universidade de Lomonosov e lá esse livro do Stalin “legalizou” de certa forma os estudos linguísticos.

Ricardo Andrade – Quer dizer que a ciência e a linguagem, que pelo menos parte da cultura, da chamada superestrutura, não seria simplesmente de classe?

Antônio Paim: Essa é a discussão que descrevo no livro: a ciência não é de classe. Quer dizer, não existe matemática de classe, nem biologia de classe. Então, essa discussão do livro do Stalin foi muito enriquecedora, mas ela chegou a certo ponto em que o marxismo ficaria sem objeto, e a discussão foi interrompida. Eu me lembro que assisti a um jurista soviético dizer que “o direito penal não é de classe”. Que o suposto, para os dois lados, é o mesmo: que a pessoa humana é recuperável. Então, aí, eu me lembro que o jurista decano resolveu encerrar a discussão, porque ia acabar com o objeto do marxismo (risos). Naquele livro, eu mostrei que o marxismo também não é impermeável, não é uma coisa dogmática assim, que você diga “aqui nesse santo ninguém mexe”. Enfim, a respeito da cultura eu sou kantiano. Acho que o problema é um processo histórico de constituição de determinada área, ou seja, vai se construindo... É o que eu tentei fazer a propósito da filosofia brasileira. Quer dizer, tentar apreender como é que nós construímos historicamente nosso contato com o real. Você tem uma realidade, como você se aproxima dela? Então, a partir disso você constrói uma esfera de saber.

Ricardo Andrade: - E a tarefa do culturalismo, para a cultura brasileira?

Antônio Paim - Bom, essas coisas estão respondidas no meu História das Ideias Filosóficas no Brasil. Essa obra está na Internet na página do Instituto de Humanidades: www.institutodehumanidades.com.br. Tem lá todos os meus livros, os livros do Ricardo Velez, do Prota, enfim, tem todos os livros do Instituto Brasileiro de Filosofia. E depois tem os cursos, né? cursos de humanidades. Quanto à história da filosofia no Brasil, eu examinei primeiro as ideias filosóficas em debate. Depois, as correntes, escolas e tudo mais, no segundo volume. E a tarefa do culturalismo para a cultura brasileira? Não tem tarefa. A cultura brasileira está estudada na minha obra. Não tem propriamente a coisa do culturalismo; tenho aí uma hipótese sobre o Brasil, publicada num livro, Momentos Decisivos da História do Brasil. Quer dizer, acho que o que o culturalismo, o kantismo, na filosofia, ajuda a conceber... Nós partimos da hipótese de que existe uma coisa chamada ‘moralidade social básica’. Uma hipótese que pode ser discutida por quem quiser. Uma moralidade que, no nosso caso brasileiro, historicamente, não é muito propícia ao desenvolvimento. Mas haveria uma outra alternativa, o Brasil poderia, no século XVIII, ter escolhido seguir o caminho da indústria, da agroindústria, a moenda, a movimentação dela, a energia para movê-la. Então, enfim. havia outras alternativas. Por que uma delas não foi seguida? Sei lá, isso ai é um mistério... Como é que se forma uma moral social. É difícil de dizer por que se escolheu aquilo.

Ricardo Andrade – Qual contribuição específica a filosofia poderia dar ao pensamento do Brasil, em distinção, por ex., da investigação sociológica?

Antônio Paim – Eu acho muito pretensiosa essa discussão... Quer dizer: então não pode haver uma inquirição a respeito da sociedade brasileira, é isso? Isso não pode ser investigação filosófica?

Crisóstomo – Se não me engano, alguns expoentes do IBF veem um déficit histórico no nosso pensamento filosófico – originariamente dominado pela Escolástica - no que tange ao reconhecimento da noção de autoconsciência. Malgrado traços em Antônio Vieira, uma contribuição decisiva em Gonçalves de Magalhães, quiçá outra em Tobias Barreto, etc. Quais seriam os marcos principais desse desenvolvimento da consciência ou autoconsciência na nossa história da filosofia? Algo da literatura brasileira poderia entrar aí? Se se trata de ir às primeiras origens positivas para o pensamento filosófico do Brasil, não seria o caso de destacar, para além de nossa prolongada, sufocante e atávica formação colonial escolástica, as contribuições anti-escolásticas (ou, pelo menos, não-escolásticas), no período colonial, de Francisco Sanches e Mathias Ayres?

Antônio Paim – Eu não sei se seria bem isso de autoconsciência. Temos alguns pontos de partida que são difíceis de delinear. Por exemplo, como já sugeri, há um momento na cultura brasileira em que, por interferência da Inquisição, nós escolhemos, em vez de seguir o caminho que levou à revolução industrial, seguir os passos da Inquisição. Quer dizer, é um dado histórico isso. Eu acho que a contribuição que o culturalismo deu para o entendimento do Brasil... Não tenho diploma nenhum pra estar falando do culturalismo mas, como eu andei dando uns palpites nessa matéria, eu posso opinar, né? Então, eu acho que a nossa contribuição vai no sentido de que existe uma moralidade social básica, que você não explica como ela foi escolhida.

Ricardo Andrade - O catolicismo atrapalhou o desenvolvimento nacional, é isso?

Antônio Paim - O Brasil era um grande fornecedor de açúcar. Os engenhos de açúcar, as usinas de açúcar do período colonial... Chegou no século XVIII sendo uma espécie de dono desse mercado. Mas a Inquisição começou a perseguir, porque o que havia na Inquisição era uma incompatibilidade da Igreja Católica com o desenvolvimento do que se chamou depois de capitalismo. De modo que acho que o que nós contribuímos foi para dar uma ideia do nosso processo histórico em geral. Pode ser que a autoconsciência não seja um bom termo...

Crisóstomo – Para além de um simples inventário, ainda que vasto e valioso, de pensadores brasileiros e de suas ideias, e além da proposta culturalista já assinalada, o que você vê como paisagem geral – resumidissimamente, claro - do pensamento filosófico brasileiro, em termos de suas vertentes e debates? Há p. ex. o que se poderia chamar de uma corrente hegeliana - “de esquerda” e “de direita” - particularmente relevante, no nosso percurso filosófico? Me lembro de, ainda garoto, ter lido um interessante trabalho de Djacir Menezes, Proudhon, Hegel e a Dialética, e depois obras dos representantes do ISEB, alguns dos quais assimilavam, além de Hegel e Marx, também Sartre e a Fenomenologia, numa espécie de pensamento, hoje se diria, descolonial ou pós-colonial...

Antônio Paim: Eu acho que são ciclos. Por exemplo, a primeira corrente do nosso pensamento que se estruturou é a que veio de Victor Cousin, do coletivo de Cousin, o Ecletismo. E acho que tem muita coisa interessante ali, sobretudo na oposição que desenvolve ao esquematismo de que o homem seria uma espécie de máquina. Você vê, o senso do tempo ia e você reagia... O grande mérito do kantismo quanto a isso é reagir num ponto essencial, o estabelecimento da moral. Porque você não tinha como, daquele esquema mecanicista, vamos chamar assim, inferir o comportamento moral, que é essencial para convivência social.

Ricardo Andrade – E além do Ecletismo de Cousin?

Antônio Paim – Eu associaria a pergunta do Crisóstomo aos ciclos históricos. Então há um outro ciclo histórico que vejo, que talvez não seja crença dos culturalistas de modo geral, que seria o entendimento de que a cultura é um setor para ser examinado do ponto de vista filosófico, e não, mecanicamente, do ponto de vista de qualquer ciência isolada. Esse ciclo esgotou-se? É provável, eu estou com 92 anos, já chega, né? já vivi o suficiente (risos). Mas não tenho outra perspectiva. Então acho que estamos num ciclo em que ainda predomina um mecanicismo. O que não quer dizer que não haja outras correntes, não digo isso de modo nenhum. Passando ao marxismo brasileiro, por exemplo, tem um livro que se chama Formação do Capital e seu Desenvolvimento, do Leônidas Resende. Esse livro introduziu o marxismo no Brasil, e o que Leônidas diz nele é o seguinte: Karl Marx e Auguste Comte viveram na mesma época, tiveram os mesmos mestres e no fim pensaram a mesma coisa. A única diferença é que um é revolucionário e o outro é reformista. Quer dizer, é um equívoco funesto isso, eu acho, porque o Comtismo é um determinismo. Enquanto acho que o marxismo é uma construção que, se você tiver habilidade suficiente, você consegue... Nós não tivemos suficiente habilidade para impedir que o marxismo no Brasil dominasse certas áreas do conhecimento... Mas aquele marxismo positivista é um equívoco.

Crisóstomo – A essa altura poderíamos talvez aludir à velha história da bipartição da filosofia universitária brasileira, faz muitas décadas, entre, de um lado, a turma da filosofia (ou história da filosofia) de tipo uspiano, estruturalista, liderada, digamos, por José Arthur Giannotti, e, de outro, a turma do Instituto Brasileiro de Filosofia, que você integra, liderada por Miguel Reale. A primeira, ligada ao rigor da leitura estruturalista de obras de uma pluralidade de filósofos clássicos, canônicos, europeus. No entanto às vezes considerada toda de esquerda ou mesmo marxista. E, em todo caso, avessa a expressões brasileiras de pensamento. Toi essa turma que se tornou numérica e institucionalmente dominante. A segunda, que perdeu peso, predominantemente interessada na pesquisa do pensamento filosófico brasileiro, considerada pela outra como sendo, em seu conjunto, de direita, ou mesmo, reacionária e pró-ditadura de 1964. Considerada também predominantemente amadorista, desprovida de rigor, enquanto trabalho filosófico universitário. Como amadorista seria também toda a nossa produção filosófica anterior, que ela queria estudar, desprovida, por isso mesmo, de qualquer interesse. Daquele tempo para cá, porém, a primeira vertente, a estruturalista, abriu-se à filosofia analítica, ao estudo do pensamento epistemológico e político liberal anglo-americano contemporâneo, agora até à chamada “filosofia comparativa” e, embora ainda bem aos poucos, também a algum interesse pelo pensamento filosófico brasileiro, ou pelas expressões brasileiras de espírito. Como no meu próprio caso, que ainda no século passado escrevi mais ou menos nessa linha um ensaio “A Filosofia como Coisa Civil”. Como mostrado também, recentemente, no considerável debate, na Coluna Anpof, sobre Filosofia Brasileira. E como nos preciosos trabalhos sobre a filosofia no Brasil de Paulo Margutti e Ivan Domingues. Na sua opinião, o pensamento filosófico de direita e o pensamento brasileiro, histórico, continuam a ser ignorados pelo establishment filosófico brasileiro? A propósito, desde o começo dessa pendenga, Immanuel Kant parece ter sido sempre, apesar de tudo, a menina dos olhos dos dois lados. E é fato também que alguns filósofos vieram a transitar nos dois lados, como, se não me engano, Tércio Sampaio Ferraz ou Vilém Flusser. Você acha que ainda faz sentido falar naquela divisão, digamos, em termos de abrasileirados de direita e estrangeirados de esquerda? Você não acha que um feliz desenvolvimento para a comunidade filosófica brasileira poderia ser uma combinação de um pensamento filosófico mais técnico com a disposição e contribuição ensaística brasileira, histórica, eventualmente menos “rigorosa” mas, em alguns casos, de expressão tentativamente mais autoral, além de contextualmente referida?

Antônio Paim – Olha, eu acho que é um mal aquela vinculação política. Quer dizer, não tem por que concordar ou discordar do que você diz, porque… Bem, quando voltei da Rússia queria me ver livre do marxismo, resolvi fazer o curso de filosofia de novo, acabei entrando para ensinar. No fim, houve, acho que em 1968, uma mudança na universidade. Na continuação de uma decisão de criar departamento, de extinguir a cátedra, etc. Mas, como havia o governo militar no meio…, era uma continuação, mas virou uma coisa de direita. Mas eu não aceitei isso, e vários outros professores não aceitaram a discussão nesses termos....

Ricardo Andrade – Mas e a disputa entre os estruturalistas, a turma da leitura cerrada, da fidelidade ao texto, e os historiadores do pensamento brasileiro?

Antônio Paim – Não sei se isso que você está chamando de estruturalismo é esclarecedor nessa disputa. Quer dizer, há na verdade uma discussão que remonta ao começo dos tempos (dos tempos nossos, né?). O professor Miguel Reale resolveu esse problema mas ele está sempre voltando. É que a filosofia é dividida em certos segmentos. Quer dizer, você tem uma perspectiva filosófica em torno a Kant e em torno a Platão, que são duas grandes perspectivas diferentes, não haveria uma terceira. Quer dizer, pode ser que haja, mas para mim não saiu, Husserl por exemplo não conseguiu. Além disso, em cima disso, constroem-se sistemas de filosofia, sistemas que a história mostra que não são duradores, que desaparecem. Hoje não há mais nenhum sistema filosófico que consiga abrigar uma porção de gente e dar um certo rumo. Então o que sobressai é essa fragmentação, que é legítima, se você considera e aceita a hipótese do Miguel Reale, de que o que desenvolve a filosofia não são os sistemas, são os problemas. O mérito dos sistemas é que eles põem uma certa estrutura, mas nessa fixação de limites aparecem as limitações, etc. O que está subjacente a isto é que há problemas que são recorrentes. E é aí que entra a filosofia nacional, que se distingue da filosofia inglesa, americana... São as questões, não os sistemas, de que ela deve se ocupar...

Ricardo Andrade – Como você avalia o interesse atual dos filósofos acadêmicos pela filosofia brasileira? Quais seriam as possíveis consequências de um maior ou menor interesse nesse campo?

Antônio Paim – Olha, eu não conheço esses interesses. O que eu imagino é que houve tempos atrás uma exclusão... Impôs-se uma politização que sempre quisemos evitar: de que a filosofia brasileira é dirigida por um grupo de direitistas. Tudo bem, não acredito que é um problema ser de direita... Agora, isso não tem nada que ver com nossa obra. Se há um interesse, se voltar a ideia, a ideia não, o dispositivo legal, de que no quarto ano do ensino de filosofia haveria um semestre dedicado à filosofia brasileira, isso vai exigir professor com essa formação, vai começar tudo de novo... 

Ricardo Andrade – Quais seriam as possíveis consequências desse um maior interesse por filosofia brasileira?

Antônio Paim - Não vai acontecer nada, não vai estourar a cabeça de ninguém (risos). vai ser um processo normal. Silvio Romero (1851-1914)), num concurso que estava prestando para a Faculdade de Direito, disse que a metafísica estava morta. Então os catedráticos examinadores lá, que eram da filosofia antiga, estranharam e perguntaram se foi ele que matou (risos). Ele ficou irritado, mandou tudo à merda e largou todos para lá. Tobias Barreto (1839-1889), que era um desorganizado, voltou a essa questão, andou escrevendo uns artigos e largou para lá. Ele não dava maior importância às coisas dele, que o próprio Silvio às vezes guardava até o fim. Mas eu achei um artigo dele que era uma espécie de resposta a isto. Futuquei, futuquei e achei outros. Quer dizer, é dali que nasce uma outra alternativa para o positivismo. O positivismo é que afirma que a metafísica está morta. Se o positivismo tem razão, tem alguma hipótese que possa levar a um outro caminho? Pode ser uma metafísica que não se ocupe dos temas clássicos, sobrevivência da alma, coisas que estavam na filosofia antiga, né? Esse foi o caso com a metafísica. Então, eu acredito que, com um maior interesse por filosofia brasileira, vai haver uma certa movimentação filosófica...

Crisóstomo – Por indicação do meu Departamento, você, quando eu ainda não lhe conhecia, participou da minha banca de concurso para professor titular em 1994, junto com os professores João Quartim, marxista ortodoxo, Olgária Mattos, marxista frankfurtiana, Arley Moreno, wittgensteiniano, Francisco Pinheiro, ex-padre, tomista. Como parte desse concurso, apresentei uma conferência no campo do hegelianismo de esquerda. Você me aprovou, junto com os demais, com uma nota excelente, não obstante ser eu, além disso, aparentemente mais do que a concorrência, um representante típico do outro lado, uspiano-unicampista. Vale recordar que minha titulação de doutorado, considerada no mesmo concurso, foi obtida com uma tese sobre Marx e Stirner, examinada pelos profs. Marcos Müller (meu orientador), Cirne Lima, Paulo Arantes, Carlos Alberto de Moura e Michel Debrun. Depois daquele concurso, você e eu nos tornamos próximos, tendo você, que simpaticamente me chamava, com exagero nos dois adjetivos, de “jovem marxista” (na verdade eu já não era jovem e começava a desenvolver meu próprio pós-hegelianismo pragmatista), me convidado  contribuir nas atividades do Centro de Estudos de Pensamento Brasileiro. E eu de fato sempre me interessei em conhecer melhor o chamado pensamento brasileiro. Por essas e outras, e ainda pelo que li de seus livros, me acostumei a ver você como, além de aplicado estudioso daquele pensamento, um representante do Esclarecimento, do secularismo, do pluralismo e da tolerância liberais. Diante disso, gostaria de saber o que você acha da atual negação radical, ao que parece de direita e conservadora, que assomou no nosso País nos últimos anos. Uma negação, intolerante, do Esclarecimento, da Modernidade, do Racionalismo, associada a certas visões filosóficas e “científicas” bastante inusitadas, bem como a certo fundamentalismo religioso...

Antônio Paim – Não… o que apoio é que a CAPES não pode ser um ente partidário. Ela conseguiu fechar todos os cursos que estudavam o pensamento brasileiro. Vou dar um exemplo. No nosso programa nós tínhamos uma revista, e a avaliação da CAPES disse o seguinte: O grupo de professores é muito ativo e tal, publica muito, mas todos num único veículo. Então a gente ficou com nota C ou D, sei lá, só sei que a gente ficou por baixo. Já a UNICAMP ganhou uma nota A porque tinha uma revista, só que havia três anos que ela não saia. Quer dizer, um negócio muito parcial. Isso é uma posição minha; eu não acho adequado que seja o Estado que diga que isso aqui é bom ou isso aqui é ruim, em matéria de pensamento. Acho que isso não é uma boa coisa. Nos países desenvolvidos, a avaliação se o curso tal é bom é feita por instituições privadas. Por ex.: Qual o objetivo do curso? o curso é para formar professores para trabalhar em que? Então, isso é fácil de medir, né? Você formou, tem emprego ou não tem. Agora, quando o objetivo é mais geral, tem a ver com a cultura, aí fica… o Estado não tem que se meter. A meu ver, né?

Ricardo Andrade – Uma proposta como “escola sem partido” não seria uma maneira do Estado interferir indevidamente no trabalho do professor?

Antônio Paim – Isso sou contra. Não tem por que o Estado estar se metendo nisso. Eu ensinei Kant durante muito tempo na Universidade. Eu dizia na primeira aula que sou kantiano. “Estou aqui para ensinar vocês a lerem a Crítica da Razão Pura pela primeira vez. Se isso aqui for entendido como proselitismo, então vamos ver onde é que está o proselitismo”. Porque eu condeno isso. Ou seja, não estou querendo que quem for aristotélico vire kantiano. Estou querendo é que a formação permita a quem se disponha a ter uma posição – porque não é obrigatório que tenha, né? – que tenha liberdade de escolha. Liberdade que eu digo no sentido de conhecimento de causa. Quer dizer, você escolhe o Aristóteles por isso, escolhe o Marx por isso. Escolhe. Para não ser uma coisa imposta ou dogmática.

Ricardo Andrade – Eu gostaria de conhecer sua opinião sobre o ensino da filosofia no segundo grau. Num livro que publiquei com André Galvão (Crítico Intrépido! Filósofo Tímido? Sílvio Romero e o ensino secundário de filosofia no Brasil), no qual você gentilmente assinou a contracapa, nós apresentamos as ideias de Silvio Romero para a reforma do currículo do Colégio Dom Pedro II. Silvio entendeu que seria uma espécie de abuso obrigar os jovens a estudar matérias complicadas, como são as filosóficas, numa idade em que eles ainda não estão devidamente amadurecidos para enfrentar os problemas da filosofia. Por isso, ele sugeriu a substituição de um programa de metafísica, de moral, etc., por um de lógica, que ensinasse aos jovens as bases da argumentação consistente. Pergunto, na sua opinião, a filosofia deveria ser obrigatória ou os jovens poderiam escolher se querem ou não estudar filosofia na escola?

Antônio Paim – Eu não tenho uma opinião sobre isso, honestamente. Quer dizer, seria útil, a meu ver, se fosse possível ensinar que o contato com o real é sempre relativo a um certo posicionamento. Eu sei que é muito difícil fazer isso. Por isso eu tenho dúvida. Porque é muito difícil você simplificar a tal ponto que não seja uma simplificação (risos).

Ricardo Andrade – Mas, você acha que o jovem precisa disso ou ele poderia esperar mais um pouco para ter contato com a filosofia? Quanto mais cedo melhor?

Antônio Paim - Eu acho que precisa. Quanto mais cedo melhor. Se fosse possível dosar. Por exemplo, por que você deve saber que tem matemática, que tem ciências sociais, mas não tem que saber que tem filosofia? Não tem religião? Não tem moral? De outro lado, ocorrem certas gaiatices... Me lembro que no meu tempo se examinou a questão de saber se o ensino de filosofia não estava sendo uma coisa ridícula. Como por exemplo ensinar que filosofia peripatética é andar para lá e para cá. Não sei, corre-se esse risco, mas acho que vale a pena. Honestamente, acho que sim.

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(1) Antônio Paim publica sobre filosofia no Brasil desde 1966, é autor do extenso História das Ideias Filosóficas no Brasil (1984), seguido de numerosos Estudos Complementares. Paim nasceu em Jacobina, Bahia, em 1927 e vive hoje numa casa de repouso para idosos em São Paulo, onde, com muito boa vontade e certa dificuldade, recebeu Ricardo Andrade (UFRB) para essa conversa, em 17/01/19. Os comentários e perguntas de Crisóstomo (UFBA) foram enviados por escrito.