Ser mulher nas Humanidades

02/04/2021 • Entrevistas

Susana de Castro entrevista Miriam Grossi.

Entrevista publicada em parceria com a Revista Humanitas, número 142.

Veja o PDF aqui.

Ao compor a maior instância do poder decisório do CNPq, a professora de Antropologia Miriam Grossi relembra sua trajetória, celebra o avanço do grupo feminino em cargos estratégicos e ratifica o papel de resistência das associações.

Em agosto de 2020, Miriam Grossi, professora de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), foi nomeada para compor o Conselho Deliberativo do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científi co e Tecnológico (CNPq), a maior instância de poder decisório do órgão. Ela assumiu o cargo logo após deixar a presidência da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciência Sociais (ANPOCS). Dois meses depois, Susana de Castro, professora de Filosofi a da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), assumia a presidência da Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (Anpof), tornando-se a terceira mulher a assumir o cargo, desde 1983. Nesta entrevista, Castro conversa com Grossi sobre os desafios de ser mulher nas Humanidades e nas instâncias de poder. Fala também acerca do papel das associações científicas nesse momento político brasileiro.


A linha do tempo acadêmica de Grossi começa com a graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 1981. Em 1988, ela defendeu sua tese de doutorado na Université de Paris V, cujo tema versou sobre as violências contra as mulheres no Rio Grande do Sul. Desde 1989 atua no departamento de Antropologia da UFSC. De lá para cá, ela acumula um histórico relevante de atuação político-acadêmica, que não foi trilhado sem entraves. Como ela mesma narra, não foram poucas as vezes que precisou ir chorar no banheiro feminino. Apesar disso, destaca a importância da presença das mulheres em instâncias de poder durante crises institucional e política e quando há falta de recursos econômicos. Em um momento no qual vivenciamos o desmonte da ciência e da educação por meio de cortes sucessivos nos financiamentos, ela define as associações científi cas como um dos principais grupos de resistência. Confira, a seguir, a conversa entre Castro e Grossi.

Susana de Castro: Como foi sua trajetória intelectual?

Mirian Grossi: Entre os principais desafios que enfrentei, enquanto cientista mulher, destaco meu papel na construção do campo de estudos feministas de gênero e sexualidade no Brasil. Saliento ainda a atuação como representante da comunidade científica na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e no CNPq e minhas experiências enquanto presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e da ANPOCS e também como vice-presidente da Associação Internacional de Antropologia e Etnologia (IUAES). No que diz respeito ao meu papel na consolidação do campo de estudos de gênero no Brasil, desde meu ingresso na UFSC, participei do grupo de pesquisadoras que criou o Seminário Internacional Fazendo Gênero, acolheu a Revista Estudos Feministas e criou o Instituto de Estudos de Gênero, que hoje agrega duas dezenas de núcleos de pesquisa em estudos de gênero da UFSC e Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e mais de uma centena de pesquisadoras. 

No início dos anos 1990, estudos de gênero eram vistos como “marginais” e “secundários” na UFSC e em nossos campos de conhecimento científico. Foram décadas de lutas, enfrentamentos em reuniões acadêmicas e exposição na mídia para construir o campo e obter o reconhecimento que temos hoje nesta área. 

Poderia acrescentar algo sobre sua atuação político-científica? 

Nesse campo, destaco minha atuação, no início dos anos 2000, como representante da área de Humanas na CAPES. Foi uma das experiências mais impactantes que vivi, em um momento em que se deu a grande virada no processo de avaliação da pós-graduação. Defender a área de Humanas, sendo uma das únicas mulheres no Conselho Técnico Científi co (CTC), ainda muito jovem, antropóloga, vinda de uma universidade que até então era emergente, foi uma característica que me tornou alvo de inúmeros ataques e violências públicas naquele espaço de decisão política. Não foram poucas as vezes que saí da sala de reuniões do Conselho para chorar no banheiro feminino, espaço onde, felizmente, secretárias e técnicas da CAPES me consolavam e me davam forças para voltar à reunião e enfrentar os ataques que sofria. 

Além desses desafios, o que mudou (ou não) para as mulheres na academia ao longo desse caminho?

Hoje, 20 anos depois, já sexagenária, fui novamente eleita pela comunidade científica para o Conselho Deliberativo do CNPq. Nos poucos meses em que estou nesta representação, vejo com alegria que somos já muitas mulheres em espaços como este, e as nossas vozes e presenças são mais respeitadas e valorizadas. Mas, claro, toda vez que vejo uma cerimônia oficial do campo de ciência e tecnologia, me indigno com a rara presença de mulheres em espaços de poder e representação acadêmico-institucional. E nas poucas vezes em que tive o privilégio de estar nesses lugares públicos de representação, cansei de ouvir “elogios” sobre o fato de que a presença feminina “embeleza” a mesa.

No que diz respeito às minhas vivências enquanto mulher na presidência de associações científicas, guardo boas lembranças do reconhecimento e particularmente do apoio das colegas mulheres para ter coragem de me candidatar e levar à frente projetos de renovação e mudança nessas instituições. Em minha experiência, em geral, somos lembradas como candidatas quando estamos vivendo momentos de crise institucional, política ou de falta de recursos econômicos. Como boas gestoras que aprendemos a ser, sabemos que esses são os momentos em que as mulheres são lembradas e estimuladas a ocuparem espaços de poder.

Mas e quanto ao respeito e reconhecimento?

Infelizmente, também em nossas associações científicas, nem sempre somos respeitadas e reconhecidas por nosso trabalho por alguns colegas. Em minhas recentes experiências na organização do primeiro Congresso Mundial de Antropologia no Brasil (realizado em 2018 na UFSC) e na presidência da ANPOCS, me surpreendi em mais de um momento com o tom de mensagens de indignação que recebia, de intervenções em minhas falas em atividades públicas, de suspeição de minha competência. Felizmente o feminismo me ajuda muito nessas horas, porque tenho o referencial teórico que me ajuda a relevar essas agressões como ataques individuais e costumo vê-las como expressão das violências cotidianas de gênero a que todas as mulheres são submetidas.

Na sua opinião, já existe reconhecimento paritário do trabalho desenvolvido pelas pesquisadoras e professoras?


Sabemos que estatisticamente as mulheres são a maioria das estudantes nas universidades brasileiras, assim como nas bolsas de iniciação científica. Ao subir os degraus de formação de mestrado e doutorado, esse número vai diminuindo gradativamente. O abandono das mulheres nesse ambiente é dado por uma série de fatores ligados ao desestímulo social às carreiras científicas das mulheres. Apesar das dificuldades vividas pelas mulheres, em particular na conciliação entre vida familiar – e, em particular, com a maternidade – e vida acadêmica, aumentou bastante na década passada o número de mulheres em carreiras acadêmicas. Essa tendência, todavia, está mudando com as imensas restrições de vagas e concursos em universidades públicas e a diminuição drástica de programas de pós-doutorado como o PNPD da CAPES.


Tal diminuição de vagas para seguir carreira científica tem afetado particularmente as mulheres com doutorado. Só se faz ciência com recursos e, neste momento, eles são muito escassos. O principal reconhecimento das mulheres cientistas no Brasil são as bolsas de produtividade do CNPq. Infelizmente as mulheres são minoria neste nível de bolsa em praticamente todas as áreas do CNPq, inclusive naquelas tradicionalmente consideradas mais “femininas”. 

Por que, na sua opinião, as Humanidades, em particular a Sociologia e a Filosofia, são perseguidas pelo atual governo?

O ataque a essas duas disciplinas está diretamente relacionado com o projeto de eliminá-las como disciplinas obrigatórias no Ensino Médio. Isso certamente se dá porque se tratam de dois campos de conhecimento que estimulam o pensamento crítico. No estado fascista no qual vivemos, pensar é um risco social e, portanto, Sociologia e Filosofia são uma grande ameaça ao projeto político atual no Brasil. 

O que considera ser a atuação e o papel político das associações de pós-graduação? Como isso se apresenta neste momento e quais são os desafios que o nosso tempo demanda?

Neste momento, vendo diariamente o desmonte da ciência e da educação através de cortes sucessivos nos financiamentos, as associações científicas se tornaram um dos principais grupos de resistência. Em particular, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) voltou a ter um papel fundamental neste momento político, relembrando sua história na defesa da democracia durante a ditadura militar. No atual contexto,
as associações vinculadas ao FCHSALLA têm tido um papel fundamental nessas lutas. O que precisamos, hoje, é lutar em muitos campos para além do central, que é a defesa da ciência e da educação. Neste último ano, em face da pandemia, a atuação da SBPC e das sociedades científicas tem sido incansável diante do negacionismo no qual o Brasil está imerso.