"Uma das principais contribuições das filosofia(s) africana(s) é um senso de responsabilidade teórico e social", entrevista com Aline Matos da Rocha

Luís Thiago Freire Dantas

Professor da UERJ e integrante do GT Filosofia da Libertação, Latino-Americana e Africana

Adilbênia Freire Machado

Professora (UFRRJ)

24/11/2021 • Entrevistas

Nesta última entrevista da séria teias ananseanas de filosofias africanas no/do Brasil, a doutoranda em Metafísica na UnB foi entrevistada por Adilbênia Machado e Luís Thiago Freire Dantas e falou sobre sua missão de descolonizar a filosofia por meio de pensadoras negras, que trazem novos conceitos e saberes/fazeres. Aline critica como nas universidades brasileiras ainda temos uma filosofia marcada pela colonialidade, e que subalterniza e invisibiliza determinadas pessoas, ignorando assim seus saberes e experiências, sobretudo as mulheres negras. Ela também defende como a(s) filosofia(s) africanas e afrodiaspóricas são uma celebração das potencialidades (est)éticas espirituais e filosóficas dos corpos e desenvolve a ideia acerca de somatocentralidade, conceito de Oyèrónké Oyewùmí, que orientada pelo raciocínio corporal, lê e organiza  a esfera social através da visão e acaba por alijar socialmente determinados corpos negros, indígenas, femininos, LGBTQIA+, etc.

Aline argumenta nessa entrevista, contudo, que não se trata de abrir mão do cânone euro-norte americano. Para ela, há uma necessidade de compreender que filosofia(s) africana(s) e filosofia ocidental não precisam se excluir, mas é necessário problematizar o fato de a filosofia ocidental ser essa história única presente em práticas educacionais que envolvam currículo, ensino, aprendizagem, pesquisa, extensão e seleções discentes e docentes em instituições acadêmicas.

Esta série é uma iniciativa do Eixo Filosofia Africana e Afro-Diaspórica da Associação de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN) e do GT Filosofia da Libertação, Latino-Americana e Africana da Anpof, dos quais Adilbênia e Thiago são coordenadores e integrantes, respectivamente. Acompanhe a entrevista abaixo. 

Qual o papel da filosofia na invisibilidade das mulheres negras?

Primeiramente, gostaria de agradecer a pergunta. Essa pergunta é um tema que mobiliza meu pensamento e minhas práticas acadêmicas desde a graduação em filosofia, lugar em que comecei a pensar sobre os não lugares da população negra na filosofia, especificamente o das mulheres negras, o que desembocou na minha monografia de finalização de curso que teve como título Pensar o Invisível: as mulheres negras como produtoras de pensamento filosófico.

Então, a história da filosofia (ocidental) é um discurso feito – como diz Oyèrónk?? Oy?wùmí – por HEBM: homens, europeus, brancos, mortos, que a gente costuma reproduzir sem questionamentos. Ou seja, sem questionar quais são as implicações de se adotar uma filosofia apenas com essa orientação discursiva. Esse foi um questionamento que me ocorreu na graduação em filosofia e que me despertou para o fato de que nas universidades brasileiras ainda temos uma filosofia muito marcada pela colonialidade, e que, nesse sentido, subalterniza e invisibiliza determinadas pessoas ignorando assim seus saberes e experiências, e as mulheres negras nesse processo são as mais invisibilizadas porque há aí uma questão interseccional de gênero e raça que faz com que elas sejam as mais atingidas em toda a estrutura social e na filosofia não seria diferente, já que ela também faz parte desse todo social que ainda é muito sexista e racista.

Desde a graduação você vem trabalhando o pensamento de Oyèrónk?? Oy?wùmí. Qual seria o conceito fundante dessa pensadora e sua importância para repensarmos a filosofia?

Sempre acreditei que nosso envolvimento com determinada autoria está ligado ao fato de que essa autoria corresponde aos nossos interesses existenciais, convicções, questionamentos e desconfortos pessoais. Oyèrónk?? Oy?wùmí foi um presente que me foi dado pelo professor wanderson flor a partir de um questionamento em aula (na graduação) sobre a existência de uma filósofa africana na(s) filosofia(s) africana(s). Sob a companhia – e não somente – do pensamento de Oyèrónk?? Oy?wùmí sigo na missão de descolonizar a filosofia por meio de pensadoras negras, que trazem novos conceitos e saberes/fazeres. Oyèrónk?? Oy?wùmí é uma filósofa que cria muitos conceitos (bio-lógica, ocidentocêntrico, cosmopercepção, somatocentralidade, oxunismo, são alguns exemplos), ferramentas fundamentais para a atividade filosófica. De modo que não conseguiria elencar um conceito fundante em seu pensamento, já que todos esses conceitos têm a capacidade de questionar e mobilizar nosso pensamento nos incitando a um fazer filosófico mais comprometido com a descolonização do seu próprio campo.

Como a compreensão do corpo na(s) filosofia(s) africana(s) contribui para desconstrução da somatofobia?

 Oyèrónk?? Oy?wùmí em seus trabalhos denuncia a natureza somatocêntrica da sociedade e cultura ocidental, que está alicerçada no corpo biológico (físico) como um corpo social, e é daí que deriva o conceito de somatocentralidade. Não podemos esquecer que soma é a palavra grega para corpo. Nesse sentido, a somatocentralidade, e o seu consequente raciocínio corporal, é utilizada para ler e organizar a esfera social através da visão. Existe uma ótica corporal na sociedade ocidental de modo que determinados corpos negros, indígenas, femininos, LGBTQIA+, etc. são e estão alijados socialmente. Negras, negros, indígenas, mulheres, LGBTQIA+, pessoas com deficiência são colocados diferencialmente e hierarquicamente na posição de Outro, e aprendemos não só com Oyèrónk?? Oy?wùmí, mas com Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Grada Kilomba, etc., que o Outro é um corpo. O corpo sem direitos, descartável e matável. Ou seja, esses são os corpos alvos prioritários da necropolítica, conceito criado por Achille Mbembe. O que precisamos considerar nessa discussão é que a somatocentralidade está diretamente ligada à somatofobia. Essa foi uma chave de leitura que o pensamento de Oyèrónk?? Oy?wùmí despertou no meu próprio pensamento. A somatocentralidade atua através da somatofobia. Há uma centralidade de corpos negros, indígenas, femininos, LGBTQIA+ etc., que são negados violentamente – até exterminados – para reafirmar socialmente o corpo hegemônico. A ideia de Sueli Carneiro em sua tese A Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser ilustra de forma brilhante isso. É preciso que corpos negros, indígenas, femininos, LGBTQIA+ sejam construídos como não-ser para que o Ser se fundamente político e socialmente. Em suma, para negar violentamente esses corpos Outros é preciso que eles existam. Contra esse pano de fundo, a(s) filosofia(s) africanas e afrodiaspóricas trazem uma leitura e “visão” que não expressam uma negação ou ontocídio de corpos negros, indígenas, femininos, LGBTQIA+, etc., mas saberes e práticas mobilizados por esses corpos. A(s) filosofia(s) africanas e afrodiaspóricas são uma celebração das potencialidades (est)éticas espirituais e filosóficas dos corpos.

Como a filosofia africana, em seu âmbito de pesquisa, contribui para repensarmos a filosofia produzida no Brasil?

Gosto de pensar em filosofia(s) africana(s) e é por isso que utilizo esse (s) no final da palavra para chamar a atenção para seu aspecto plural, no qual estão assentados as próprias pesquisas e produções em filosofia africana no Brasil que vem fazendo um trabalho de trazer   – como bem sinaliza Thiago Dantas em sua tese de doutorado em filosofia – uma Filosofia desde África, que contribui para repensar e descolonizar a filosofia no Brasil. Logicamente que não se trata de abrir mão do cânone euro-norte americano como comumente pensam quando trazemos a reivindicação da presença – e consequentemente da discussão – da(s) filosofia(s) africana(s). Precisamos compreender que filosofia(s) africana(s) e filosofia ocidental não precisam se excluir. Entretanto, precisamos problematizar o fato de a filosofia ocidental ser essa história única presente em práticas educacionais que envolvam currículo, ensino, aprendizagem, pesquisa, extensão e seleções discentes e docentes em instituições acadêmicas. Pra mim uma das principais contribuições da(s) filosofia(s) africanas é um senso de responsabilidade teórica/social, no sentido de questionarmos: qual a relação entre filosofia e sociedade?

Ao fazermos essa questão, compreendemos que a filosofia ocidental, não é um fim em si mesmo, mas um instrumento que nos possibilita percorrer e compreender alguns aspectos da nossa realidade, mas não todos. Há limites cognoscíveis. Não posso apenas me valer do conceito foucaultiano de biopolítica para ler e interpretar o Brasil, um país que revela suas faces por meio do extermínio (seletivo) de corpos negros, isto é, de necropolítica.

 

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