Filósofa feminista Linda Alcoff vem ao Brasil para o XVIII Encontro da Anpof

27/03/2018 • Notas e Comunicados

Uma das convidadas para o XVIII encontro da Anpof, que já confirmou presença, é a filósofa feminista Linda Martín Alcoff. O evento acontece entre 22 e 26 outubro deste ano na Universidade Federal do Espírito Santo, em Vitória. Sua palestra, intitulada “From feminist epistemology to decolonial feminist epistemology”, nos convida a refletir sobre epistemologia a partir da experiência feminista e de uma experiência que procura identificar e eliminar formas de colonização do próprio pensamento. Neste mês das mulheres, o GT de Gênero e Filosofia, através da doutora em Filosofia pela UFSC, Ilze Zirbel, nos apresenta esta filósofa e nos presenteia com uma tradução de seu artigo “What’s Wrong With Philosophy?”, publicado no The New York Times, The Opinion Pages, The Stone (fórum para filósofos e filósofas contemporâneos sobre questões consideradas oportunas e atemporais) em setembro de 2013. Atalho para o texto original: https://opinionator.blogs.nytimes.com/2013/09/03/whats-wrong-with-philosophy/.

Sobre Linda Alcoff – por Ilze Zirbel

Linda Alcoff foi professora na Universidade de Syracuse e atualmente leciona na Hunter College e na City University of New York (CUNY). Entre 2012-2013 presidiu uma das divisões da American Philosophical Association (APA – divisão leste/costa Atlântica).

Nascida no Panamá e criada nos Estados Unidos, Alcoff identifica-se como uma pessoa de “genealogia mista” e “localização interseccional” (entre a cultura latina e a estadunidense). Tal característica é explorada por ela como um recurso para pensar questões étnicas, raciais e de gênero (suas múltiplas “experiências vividas”).

Seu livro mais conhecido, Visible Identities: Race, Gender, and the Self, obteve o prêmio Frantz Fanon (2009) e apresenta uma fenomenologia da “encarnação" racial e de gênero. Para ela, as identidades são algo visivelmente marcado no corpo e fortemente sentidas pelos indivíduos. Assim sendo, não deveriam ser evitadas ou postas de lado por um projeto de identidade nacional (unificador e simplificador) ou pelas filosofias políticas liberais que vêm nessas identidades um risco de separatismo (capazes de impedir a coesão ou o consenso sobreposto), reificação (de categorias estereotipadas, capazes de minar a autonomia e os planos dos indivíduos) ou de raciocínio falho (que pode atrapalhar a deliberação racional pública).

Na visão de Alcoff, as identidades sociais devem ser entendidas como horizontes interpretativos e interativos. “O que” somos e “de onde” viemos (nossa localização social) marcam a maneira como conhecemos, compreendemos e argumentamos sobre o mundo. Nossas identidades afetam fortemente nossa interação com a realidade e não podem ser facilmente transcendidas. Além disso, nossos corpos (nossa identidade visibilizada) não afetam apenas a nossa experiência do mundo, mas também entram na experiência dos outros.

No artigo “Epistemologies of Ignorance: Three types”, Alcoff dedica-se a outro tema significativo para a epistemologia: a produção, deliberada ou não, da ignorância. Juntamente com os demais autores e autoras do livro no qual o artigo foi publicado (Race and Epistemologies of Ignorance, editado por Shannon Sullivan e Nancy Tuana, Albany, NY: SUNY Press, 2007), Alcoff defende a necessidade de pensar a ignorância não como característica de uma prática epistêmica negligente, mas uma prática substantiva. Nesse sentido, a ignorância é descrita como contextual (as vantagens e desvantagens epistêmicas não são as mesmas para todas as pessoas, mas têm a ver com questões contextuais) e seus padrões estão associados a identidades sociais e de grupo, focadas em “práticas específicas de conhecimento inculcadas em um grupo socialmente dominante” (p. 47).

A ignorância é mantida (ativa e/ou passivamente) pelas estruturas e instituições da sociedade por uma razão específica e ajustada de acordo com os fins determinados por essa sociedade e os grupos dominantes e subordinados que a habitam (p. 54). Assim, para Alcoff, pensar a ignorância exige “não só uma análise das condições gerais da situação epistêmica, dos recursos epistêmicos distribuídos de maneiras diferentes através das localizações sociais, ou os contextos estruturais que organizam e reproduzem a opressão; para realmente entender a causa do problema da ignorância, também precisamos fazer a epistemologia ser reflexivamente consciente e crítica da sua localização dentro de um sistema econômico” (p.57).

Também no campo da espistemologia, Alcoff tem considerado a relação do conhecimento com o poder e, em especial, com o colonialismo. Nesse sentido, tornaram-se centrais para ela questões como "Qual o papel desempenhado pela epistemologia ocidental na promoção de injustiças epistêmicas?" e "Quais as lições epistêmicas (e não simplesmente sociológicas ou políticas) a serem aprendidas com a história da desautorização epistêmica preventiva praticada em relação às mulheres e grupos inteiros de pessoas em todo o mundo?" A proposta de Alcoff (e outras feministas decolonialistas) é a de uma reconstrução

normativa da epistemologia que inclua, por exemplo, uma reflexividade sobre o contexto social em que ocorre a formação e justificação das crenças, uma reavaliação do papel dos valores sociais e políticos como virtudes epistêmicas e a reconsideração dos pressupostos sobre a natureza universal da justificação.

O trabalho de Linda Alcoff é instigante para as mais variadas áreas da filosofia. Vale a pena conferir sua apresentação no encontro da Anpof deste ano. Veja abaixo a tradução de seu texto “What’s Wrong With Philosophy?”.

O que há de errado com a filosofia?, Linda Alcoff
Tradução de Ilze Zirbel

Esta é a pergunta que me foi feita por jornalistas no ano passado, enquanto atuei como presidente da American Philosophical Association, Eastern Division.
Por que a filosofia está tão atrás dos outros departamentos de humanidades na questão da diversidade? Por que seu percentual de mulheres e pessoas de cor (um conjunto de interseção) está tão desatualizado em relação ao restante do país, mesmo na educação superior? O que há de errado com a filosofia?

E agora o nosso campo tem outro evento notável: as reivindicações de assédio sexual contra o influente filósofo Colin McGinn, e sua posterior renúncia, uma história que fez a primeira página do New York Times. Nesse caso temos um proeminente filósofo da linguagem incapaz de discernir como as brincadeiras sexuais se tornam pressão sexual quando são repetidamente direcionadas por alguém poderoso à sua jovem assistente. Isso nos leva a pensar: o que há de errado com o campo da filosofia da linguagem?

McGinn se defendeu desviando a culpa. A aluna, argumentou ele, simplesmente não entendia suficientemente a filosofia da linguagem para perceber o caráter inofensivo de suas piadas. Ele não pretendia prejudicar, nem suas declarações implicavam logicamente danos; portanto, a sensação de dano é algo “dela”.

Infelizmente, a autodefesa de McGinn ecoa como uma narrativa comum na disciplina em relação aos seus desafios demográficos. Como o artigo no The Times relata, e a blogosfera da filosofia irá confirmar, a escassez na filosofia de mulheres e pessoas de cor é, muitas vezes, colocada como culpa nossa. Alguns sugerem que é o estilo de debate “áspero e frio” da filosofia que afastou a nós mulheres e homens não brancos. Implicação lógica: nós talvez não podemos ser alijados de um campo tão exigente.

Certa vez, na pós-graduação, eu arrisquei a levantar uma série de perguntas céticas para um dos filósofos de renome mundial, Roderick Chisholm, em seu seminário sobre a teoria do conhecimento. Eu me inclinara ao pragmatismo americano e Wittgenstein. Ele era um famoso fundacionalista. [Após as minhas questões] ele “limpou o chão” comigo, transformando/esmagando minhas perguntas em uma massa disforme e tirando um bom riso da turma. Isso não me surpreendeu, mas o que me surpreendeu foi que, no dia seguinte, Chisholm se aproximou da sala de estudantes e me perguntou gentilmente se eu estava o.K. Respondi: “Sim, é claro”. O que era verdade.

Eu tinha observado o estilo pedagógico de Chisholm por dois anos e eu sabia da sua capacidade de transformar a opinião dissidente de um aluno em uma geleca de imobilidade trêmula, para a alegria da classe. Eu admirei suas habilidades. Mas eu ainda queria ver como ele responderia às minhas perguntas específicas. Apesar de suas piadas, podia-se obter de sua resposta às minhas perguntas uma réplica filosófica substantiva. Foi uma troca filosófica perfeitamente legítima, um pouco animada para manter seus alunos acordados.

Chisholm foi alguém típico entre os melhores filósofos de seu tempo e do nosso em sua combinação de perspicácia filosófica e habilidade retórica. No entanto, ele era atípico naquela época em sua sensibilidade aos contextos práticos da arena argumentativa. Ele tinha suficiente respeito por mim para me tratar como todos os demais, mas também para me querer manter no jogo. Como uma das duas mulheres na classe, ele estava ciente de que eu poderia estar experimentando uma ansiedade induzida por alienação sobre meu desempenho público.

O ponto aqui não é debater, simplificar, mas a maneira como isso é feito. Muitos filósofos aceitam a idéia de que a verdade é melhor alcançada por meio de um mercado de idéias conduzido pela moda da “última disputa”. Mas estilos agressivos a procura de vitórias fáceis, insistindo em contra-exemplos arcanos, não maximizam a verdade. Nem fazer uso das vantagens sociais de alguém em virtude de seu gênero, etnia ou senioridade, ou recusar teimosamente em reconhecer os contextos do mundo real, repleto de preconceitos implícitos e distorções de poder, nos quais até mesmo debates filosóficos sempre ocorrem.

Às vezes, curiosamente, o objetivo da busca da verdade é menos favorecido por argumentos adversários do que por uma receptividade que retém o desacordo o suficiente para experimentar as novas idéias oferecidas, pressioná-las para seguirem em frente e ver onde podem ir. Às vezes, a pedagogia funciona melhor não por desafiar, mas por entrar a bordo da própria agenda do aluno. Às vezes, o entendimento é melhor alcançado quando gastamos nossas faculdades céticas, como Montaigne fez, nas nossas próprias crenças, nossas próprias opiniões. Se o debate é pensado como um meio para a verdade - uma ideia na qual nós filósofos gostamos de acreditar - as melhores formas de levá-lo a cabo acabam sendo levar em conta um conjunto variado e não uniforme de elementos.

Os desafios demográficos da filosofia não podem ser transformados em culpa das deficiências das minorias. Ao contrário do professor Chisholm, McGinn não checou com sua aluna [o efeito de suas palavras], mas continuou a lançar seus e-mails com insinuações sexuais, senão proposições. As mulheres que tiveram essa experiência na disciplina (eu e quase todas que conheço) podem ser desconcertadas pelo pensamento de que o louvor intelectual de seu professor é estrategicamente motivado, projetado com uma intenção diferente da intenção de buscar a verdade. Isso pode acabar com a confiança e certamente apaga o debate. O que pode, claro, ser bastante intencional.

linda