FILOSOFIA E PANDEMIA - A FRAGILIDADE DAS SOCIEDADES POLITICAMENTE ORGANIZADAS E A EXISTENCIALIDADE NA QUOTIDIANIDADE DA DOR E DO MEDO.

MARIA INES CHAVES PREZA FREITAS

26/05/2021 • Filosofia e Pandemia

(Por Prof.a Doutora MARIA INÊS CHAVES PREZA FREITAS)

 

A filosofia é um procedimento humano que afirma, sem deixar dúvidas, a liberdade de pensar. Nesse sentido, a filosofia se identifica com a história do pensamento humano e, portanto, do próprio ser humano.

Assim refletindo sobre o tema Filosofia e Pandemia, o primeiro problema que surge tem a ver com o medo que a pandemia provoca. Thomas Hobbes, o fundador do pensamento político moderno, considerava que o medo da morte é a nossa paixão fundamental.

Na ausência de um Estado, politicamente organizado, prevalece o medo, e a vida dos homens tende a ser difícil e breve. A pandemia, tal como acontece geralmente com catástrofes naturais, ou com a guerra, especialmente se for guerra civil, veio recordar-nos a fragilidade das sociedades politicamente organizadas e o modo como elas podem rapidamente cair na anarquia se não existir uma condução política da situação.

Avançamos na reflexão tratando do instante em que mulheres e homens se deparam com a possibilidade concreta da morte, que se tornou muito presente em nossas casas à medida que as televisões nos bombardeiam com dados sobre as mortes causadas pelo vírus e com imagens de covas reservadas a essas pessoas, sem que seus familiares, ao menos, possam ter seus momentos de despedida.

Com certeza, nos próximos tempos, os filósofos voltarão à reflexão sobre o papel social e político do medo da morte, além dos impactos sociais por ele provocados.

Mundo afora, estamos vivendo uma pandemia de dimensões catastróficas e o Brasil, na América Latina, é um dos países que mais apresenta casos de contágios pelo coronavírus. E sabemos que quem vai sofrer mais com a propagação do vírus e o colapso na saúde são os(as) mais pobres, as mulheres, os negros(as) que moram nas periferias.

Com a crescente percepção dos problemas económicos provocados pela pandemia e pelo combate à pandemia, surge com maior acuidade a questão dos efeitos assimétricos da crise em função das desigualdades sociais preexistentes.

Com a pandemia, será necessário voltar à reflexão sobre a justiça distributiva e incidir especialmente nos cuidados de saúde.

Um outro aspecto específico da reflexão contemporânea sobre a justiça, que terá de ser reavaliado, é o da justiça em relação aos mais velhos e da justiça intergeracional (em relação às próximas gerações), dada a terrível situação vivida nos lares para idosos e a previsibilidade de mais pandemias no futuro.

Em relação ao tópico da prisão a que as pessoas são obrigadas em suas próprias casas, pode-se discutir o conceito de eterno retorno, descrito por Friedrich Nietzsche, que trata da ausência de vida presente nas rotinas das pessoas. Nesse contexto, as moradas acabam tornando-se locais assustadores, prisões para considerável parcela da população, uma consequência de o bem-estar não ser tomado como primazia nas rotinas e nas vidas, gerando uma certa “urgência de viver”, uma necessidade de aproveitar o momento como “deveria ser aproveitado”. Outro problema que tem sido correntemente levantado relaciona-se com a origem do novo coronavírus: a afirmação de uma parte dos cientistas de que a transmissão para humanos se deu num mercado onde se transacionavam espécies animais selvagens coloca no centro do problema da origem a relação entre o homem e a natureza.

Há muito que as diversas correntes filosóficas da ética animal e da ética ambiental procuram criticar a relação de exploração e manipulação que existe em relação às espécies selvagens. Neste aspecto, a pandemia vem confrontar, de forma particularmente clara, as visões antropocêntricas prevalecentes que consideram que a natureza, incluindo os animais não humanos, é apenas um recurso ao serviço da espécie humana.

Os estragos provocados pela Covid-19 ainda são imprevisíveis. Com o fechamento de estabelecimentos comerciais, shopping centers e o enclausuramento da população para se proteger do vírus que já matou cerca de 600.000 pessoas no Brasil, as perdas econômicas são inevitáveis.

O problema é que nem todo mundo goza do privilégio de se proteger contra uma ameaça que tirou a vida de quase 7 milhões de pessoas no mundo todo. Na prateleira estãomulheres e negros, pobres – quase se confundem na invisibilidade.

O drama vivido por empregadas domésticas e diaristas salta aos olhos. O setor, marginalizado desde o período da escravidão, emprega 7 milhões de pessoas – maior do mundo.

Deste total, diz um estudo de 2015 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que é ligado ao Ministério do Planejamento e integra o escopo da ONU Mulheres, 3,7 milhões de empregadas domésticas são negras.

Para piorar o cenário, este grupo se vê agora ameaçado e na iminência de perder o emprego com os efeitos do novo coronavírus entre os trabalhadores informais.

Hoje, não há como questionar a necessidade do isolamento social como política preventiva. Contudo, também temos que discutir que a medida tem colocado os setores mais oprimidos da população em situações terríveis, bem piores daquelas vividas pela classe social burguesa.

“Os de baixo”, são mortos todos os dias, pelas garras da polícia, pelas patas de um racista, com a ponta do fuzil ou como vítima do feminicídio. Isso para não falar dos estupros e espaçamentos, além da violência doméstica, física, psicológica e emocional, que tem aumentado de forma vertiginosa com o isolamento social.

Para terminar, creio ser importante referir que a filosofia tem também uma dimensão existencial relevante, vocacionada para enfrentar na primeira pessoa as grandes interrogações sobre a vida, a morte, o nosso destino individual e coletivo, a angústia pelo afastamento do outro, do ente querido, não vendo possibilidade num tempo próximo, do reencontro da pessoa amada.

A filosofia, segundo a máxima ciceroniana de Montaigne, consiste em "aprender a morrer". Desde as grandes escolas filosófica das Antiguidade tardia, como o estoicismo e o epicurismo, ao existencialismo contemporâneo de autores como Camus e Sartre, passando por muitos outros, a filosofia pode ser um bálsamo para tempos difíceis ou, pelo contrário, um acordar das consciências adormecidas pelo efeito anestesiante da quotidianidade. Esta dimensão da filosofia, indo para além das áreas da ética e da política que aqui me propus tratar, será com certeza central nos próximos tempos, durante e após a pandemia.

BIBLIOGRAFIA
CAMUS, A. A Peste. São Paulo: Editora Opera Mundi, 1971.
HOBBES, T. Leviatã. Traduzido por Daniel M. Miranda. Bauru: Edipro, 2015.
NIETZSCHE, F. Obras incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1996 (Col. "Os Pensadores").
MARTON S. ______. éternel retour, le temps et histoire. In: BINOCHE, B.; Sorosina, A. (orgs.). Les historicités de Nietzsche. Paris: Publications de la Sorbonne, 2016, p.105-126.
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios I – De como filosofar é aprender a morrer. Tradução de Sérgio Milllet. Consultoria Marilena de Souza Chauí.; 5.ed. São Paulo: Nova Cultural. Coleção os pensadores. 1991.
OLIVEIRA, M Araújo de. Antropologia Filosófica Contemporânea – Subjetividade e Inversão Teórica – São Paulo: Editora Paulus, 2012.
PREZA, M. I. C. – Introdução á Filosofia – Um caminho para a Sabedoria – Rio de Janeiro: Editora Fatun, 2015.
SARTRE, J. P. Obras Incompletas. Tradução de Rita Correia Guedes, Luiz Roberto Salinas Forte, Bento Prado Júnior São Paulo: Nova Cultural, 1996 (Col. "Os Pensadores”).
SOUZA, J. A Construção Social da Subcidadania – para uma sociologia política da modernidade periférica – BH: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003 (Coleção Origem).